Thiago Martins de Melo. Onde Está a Arte. Número 18.
Na pulsão das cores em pinceladas vertiginosas vemos militâncias espirituais, narrativas da simbologia afro-brasileira e índigena. Referências misturadas às turbulentas lutas de nosso povo.
Partos e nascimentos
Sons de sinos ecoam no alto de uma igreja permeada de pequenas casas e alguns vestígios de natureza. Quem ouve ao longe sabe que é hora de se iniciar as preces e se aproximar do local, pois a missa já vai começar. A liturgia do cristianismo prega o convívio de seus seguidores com o poder da imagem, dos vitrais aos santos que se veem no centro do altar. Com os olhos detidos nos percursos pelas ruas da cidade interiorana de Codó, Maranhão (290 quilômetros de São Luís, capital do estado) a caminho da igreja, um garoto atento costumava acompanhar a sua avó para as cerimônias em uma igreja bem antiga. Quando se aproximava o dia da Paixão de Cristo, a narrativa imagética dos sofrimentos, dores e milagres visível em toda uma sequência humana com episódios da vida de Cristo levava o garoto a compreender algo de tudo aquilo. Algo que o conhecimento dele sobre mitos, histórias, memórias, entidades e tantas outras figuras que habitam esse mundo viriam a lhe fornecer vestígios.
Ao lado das igrejas em Codó havia a constante presença dos terreiros, que formaram o imaginário do garoto e de toda a sua família, que por diversas vezes dormiam com o batuque dos tambores. O sincretismo dos rituais, da espiritualidade e da cultura na cidade dos avós do então garoto e hoje artista e cineasta Thiago Martins de Melo é fruto da herança de uma mescla de povos que se encontram no Maranhão para criar algo único através da fé. Herança das tribos tupinambás, dos nagôs e das muitas famílias espirituais que vieram sobretudo da migração das populações da África que acompanharam os escravizados em sua jornada ao Brasil. Cada uma daquelas pessoas que vieram a serem escravizadas tinham um guia espiritual, que conforme a fé, não se vivia uma vida só, havia, portanto, várias encarnações onde nelas habitavam muita gente que conhecemos e que nos acolheram.
A cidade de Codó, antes de ser a terra dos avós de Thiago - que eram pernambucanos e se mudaram para o Maranhão posteriormente - foi uma região de importantes fazendas de algodão e cânhamo, vitais para o exército americano durante a Guerra da Secessão (1861 - 1865), que ganhavam com a venda tanto para as tropas da União ao norte dos EUA, quanto para os dos Confederados ao sul, que tinham uma relação ainda marcante com o escravismo. A região maranhense dessa maneira veio a se desenvolver com a escravidão latente.
O sincretismo surge pelas terras do estado do Maranhão pelo encontro forçado de diversas vozes, diversos corpos e costuras que se dão com o intuito de aproximar culturas para resistir e sobreviver. O que não se sabe, ou melhor, boa parte dos brasileiros desconhecem é que até 1908 havia um porto clandestino com constante tráfego de africanos escravizados trazidos ao Brasil pelo literal do Maranhão, mesmo com a lei Áurea tendo posto um fim na escravidão, revela Thiago em uma das passagens de nossa conversa.
Em uma terra rasgada e ferida por lutas, com uma presença maciça de indígenas, a chegada constante de pessoas escravizadas vindas da África formou um sincretismo muito forte. “No próprio Maranhão é difícil você encontrar alguém que não entenda a espiritualidade africana, porque está nas festas, está no Bumba meu boi. Quando você vai ver, o Tambor de Mina é incorporado nas festas católicas de Santo Antônio, São Marçal e os padres sabem”, diz Thiago que carrega em sua história todas as experiências vividas pelos seus antepassados e dos que com ele conviveram.
Um bom exemplo de todo esse encontro pode ser visto nos Gamelas. Conhecidos também como Akroá-Gamela, são povos indígenas que vivem atualmente em seis comunidades nos municípios de Viana e Matinha. Ao passo que se aproximaram da sociedade dominante, durante o século XVIII, os Gamelas sofreram um grande processo de apagamento pelos colonizadores no Maranhão.
O sincretismo nas terras do Maranhão se estende de tal maneira que as misturas de identidades e fenótipos formam um conjunto de cidadãos que possuem aparências que não se assemelham com as suas origens. “Entre os Gamelas tem um senhorzinho loiro de olho claro e ele é indígena, e boa parte dos Gamelas são negros, se você for parar para pensar na feição, no fenótipo, só que eles são indígenas e isso acontece muito na Bahia com os tupinambás, porque entre os quilombos às vezes uma pessoa fugia na época da escravidão e os que conseguiam escapar, conseguia ter a liberdade. As vezes era bem aceito pelas comunidades indígenas ou pelas próprias comunidades em geral.”
Ao nos traçar um olhar sobre o Brasil, em toda a complexidade das muitas culturas amalgamadas no seio da terra uma vez chamada de Pindorama, Thiago Martins de Melo pensa também sobre a materialidade de seu trabalho, a criação constante de signos e simbolismos por meio da arte e de seus usos, em uma história que é universal. “Como artista quando eu faço meu trabalho eu não penso como um artista apenas brasileiro, penso como um artista, um pintor, um escultor, da espécie humana, que tenho trabalhado com os signos da minha cultura para falar de algo que todo mundo já conhece e que é universal. Estou falando de vida e morte o tempo inteiro, estou falando da luta de oprimido contra o opressor, estou falando de partos e de nascimentos.”
É importante permear toda a dimensão do percurso daqueles que fizeram o chão que pisamos, dos rituais às imagens, mesmo que brevemente aqui, para nos aprofundarmos na arte de Thiago Martins de Melo. A vastidão das narrativas de suas pinturas, esculturas e filmes nos pede por um olhar atento para navegarmos por entre mitos, histórias e tradições. “Meu processo de pintura é muito verbal, tenho uma questão visual muito forte, penso muito em palavras, muito em história, meus trabalhos todos são histórias, são narrativas.”
São arquétipos de nossa vida
Ao se deparar com as imagens da Paixão de Cristo na infância, Thiago Martins de Melo observava as narrativas de vida, de morte e renascimento numa sequência que surge no tarô com seus vinte e um arcanos e também na ideia da roda da fortuna, onde uma hora o que está no alto pode estar por baixo. A cultura maranhense, conforme mencionado acima, propõe muitos encontros de narrativas com o espiritual que se aproxima de seu imaginário. A pajelança com o Tambor de Mina, as festas do divino espírito santo feitas nos terreiros de Nagô Iorubá. As festas realizadas em São Luís tão repletas de cores e encontros comumente realizadas nas casas de vodum - há uma relação presente com o vodu haitiano, mas que surge de forma distinta, de uma tradição que vem do Benin, do reino de Daomê. Em suma, a cultura afro-brasileira maranhense com toda a sua historicidade é o cerne de seu trabalho, mas não para por aí. Com o passar do tempo abarca as mais diversas histórias da humanidade.
A pintura figurativa então surge em seu trabalho para dar conta das referências de sua pesquisa com múltiplas narrativas. Quando começou a trabalhar com a arte nesses termos da figuração, a arte contemporânea brasileira parecia estar alheia ao seu trabalho, por uma razão que pode ser lida como um cenário do mercado de arte, curadores e museus nos anos 90, afinal o que estava em voga era uma arte mais abstrata. “Quando eu comecei a fazer figura tinha a impressão que as pessoas olhavam para mim e achavam que devia ser um naïf alguma coisa desse tipo que não entendiam as questões da pintura. Isso ninguém me falou diretamente, mas lembro das pessoas falando poxa ele pinta bem, tem o domínio da pintura conhece composição, conhece cor, sabe pintar todas as técnicas, os materiais, mas ‘porque ele pinta essas pessoas?’, ‘porque ele não se preocupa com as questões da pintura’'?”
As questões da pintura impostas por uma academia repleta de dogmas e conceitos ultrapassados não deteve a atuação de Thiago, que com um talento inegável em sua composição, enquadramentos e cores realizava obras profundamente sensíveis e pungentes, merecidamente reconhecidas com o passar dos anos. “Eu me interessava pela narrativa visual só que eu chegava aqui e não podia. Essas narrativas não existiam na arte brasileira e aí quando você olhava para fora: Alemanha que era o berço da pintura contemporânea atual, ou quando você pensa Transvanguarda italiana, Neoexpressionismo alemão, era esses caras, como Albert Oehlen que era um cara mais abstrato, quando você fala do Jörg Immendorff que é um artista que eu adoro. Porque os caras na Alemanha podem pintar figurativo e a gente não pode? Jörg Immendorff era mais gestual, mais abstrato.”
A sua trajetória então passa pela formação em psicologia e os oito anos na faculdade de artes visuais. Seu interesse por cinema, quadrinhos, além da antropologia e a psicologia lhe davam caminhos para as narrativas visuais que veio a transpor em sua arte e em seu conhecimento.
Então a pintura figurativa surge com força no Brasil no lastro do que ocorria lá fora e uma galeria paulistana chama Thiago para realizar uma exposição individual em seu espaço. O artista chama atenção para um crescimento súbito que surge no país a partir dos anos 2010. Uma retomada de conceitos que até então haviam se tornado pouco significativos para críticos e curadores. “O Brasil tem uma coisa de vira lata. Quando lá fora tem um boom de alguma coisa, aqui dentro todo mundo começa a aceitar. Já tinha gente pintando assim como eu, então uma galeria pequena chamada Mendes Wood me chamou na época. Hoje é uma galeria gigantesca. E eu fui um dos primeiros artistas da galeria. Eles viram isso ai, aí começou a normalizar. Tinha muito artista figurativo, aí deu um boom da pintura novamente.”
Thiago Martins de Melo já pintava desde os dezesseis anos, inspirado nas lutas dos povos mesclados desse país continental, além de toda a sua pulsão das cores, vívidas. Releituras do anime Ghost in the Shell e de leituras a partir de Descartes nessa obra japonesa com o passar do tempo trarão as influências do teatro Nagô-Cartesiano. “Eu sempre tentei entender essa relação de colonialismo cultural, que está sempre ligado. Eu tinha um trabalho que era uma releitura do Ghost in the Shell do anime, um trabalho meu e da minha ex-esposa. Uma coisa de fantasma, lembro até de colocar em ideograma japonês, porque era um negócio do fantasma da máquina que remetia a um conceito que era de (o filósofo René) Descartes, de 1500 anos. Aí eu entendia como esses conceitos vão entrar na cultura pop, daí eu achei uma coisa que é o teatro Nagô-Cartesiano que era entender desde a religiosidade cartesiana do nagô, que dizia que aqui (atrás da cabeça, entre o pescoço e a cabeça) era uma das passagens do espírito, até como Descartes encontrava o lugar da alma, ninguém queria falar disso.”
Quando a galeria paulistana o chamou para apresentar o seu trabalho, Thiago percebeu que foi nesse momento que começaram a observar seu trabalho com um pouco mais de atenção. “Eu tinha 30 anos quando começaram a olhar o meu trabalho, tentava direto participar de edital.”
Os significados das construções imagéticas representadas em suas telas, imersas em delírios, territórios cósmicos de diversas entidades e em realidades oníricas fizeram desde o início e até o presente, entre o mercado e os museus, leituras imprecisas do que os seus trabalhos tem a dizer, ainda mais por significar algo que nunca se falou antes sobre espiritualidade, narrativas do sincretismo afro-brasileiro com tanta ênfase. “Por mais que eu quisesse explicar às pessoas, elas viam a pintura como o prazer da pintura, essas bobagens. Ninguém no Brasil entendia isso, até hoje não entendem. Quando eu quero falar, não é isso que eles querem. Quando o trabalho vai mais para o lado histórico e religioso, as pessoas esquecem o lado espiritual porque acham que isso é uma coisa naïf e começa a focar só no político. Pode ver na produção de 2013, tem um monte de caboclo, e entidades lá e eles colocam como se fossem minorias étnicas, mas são entidades espirituais! Então quando eu fiz a minha Bienal de São Paulo em 2014 só tinha caboclo e santo ali. Teve entidades que tive que fazer imagem porque não tinham imagens e as pessoas ali diziam na crítica que eram figuras camponesas”
O enfático discurso e leituras em textos críticos publicados por certos críticos de arte na ocasião da 31ª Bienal de São Paulo, de 2014, deixam Thiago perplexo. Ao dizerem que tais figuras são o que não são, figuras camponesas quando são entidades, se trata de pouco esforço dos tais críticos em se debruçar nem tanto na obra de Thiago somente, mas na cultura de seu próprio país. "Aí diziam que meus índios era índio americano cara isso não é índio americano, isso é caboclo ubirajara e esse é caboclo sete flechas e eles gostam sim de usar os penachos dos índios americanos porque eles aparecem assim, com aquele penacho grande, como eu na minha arrogância vou mudar a roupa de um santo, de um caboclo? Como ocorre o Colonialismo cultural, é uma questão de respeito com a entidade você não pode mudar isso, o caboclo escolhe a indumentária."
Ao observar os ritos de passagem do tempo, a arte que Thiago Martins de Melo faz se insere nos tais arquétipos de nossa vida. Na travessia que nós enquanto seres espirituais atravessamos, a arte deve vir com um significado que possa transcender, se sobreviver ao tempo. “Não estou fazendo arte para o século XXI, não estou fazendo arte para o século XX, eu acho que quando eu morrer, se eu tiver muita sorte, isso possa sobreviver como uma fotografia, uma imagem, que alguém vai falar daqui 300 anos: ‘olha, um cara em 2020 tava pintando isso aqui’, porque é isso que a gente vê, quando a gente vê uma pintura do século XIX, XVIII, nunca vejo como algo antigo, sempre vejo algo que é humano, que é de agora está falando coisas da vida. Ali tem um homem, uma mulher, a morte, o nascimento, tem deuses, acho que essa é a sina do artista.”
E complementa: “Um conselho que eu daria para qualquer artista jovem: Fazer aquilo que realmente encontrar em si, o que te fez ser artista e não se deixar levar por modismos, ou por dogmas momentâneos. Todos esses dogmas, esses conceitos atuais, eles vão embora. Hoje, a gente vive num mundo neoliberal, capitalista, que ele cria o tempo inteiro coisas, todo momento tão criando coisas que não interessam, discussões que são frívolas, mas aquilo que vai ficar é justamente aquilo que vai encontrar dentro de si, porque é aí que vai tocar os outros. Tem artista, por exemplo, que cuja pesquisa é a questão da luz. O cara passa a vida inteira atrás da luz e é algo válido. É a pesquisa pessoal do cara, o cara pinta, o fotógrafo com a cor, transformar algo que pode ser seu, a imagem, a construção de signos.”
O cinema brasileiro para Thiago Martins de Melo
Quem já se deteve diante de uma pintura de Thiago pôde observar ali uma narrativa de histórias. Construções de imagens, camadas e mais camadas de signos e simbolismos. Em seus filmes surgem as pinturas em movimento, como se elas saíssem da parede e realizasse todo o processo de se aproximar de nós na pulsão de uma cartografia do invisível, onde as entidades, forças de uma cultura viva saltassem sobre os nossos olhos.
A pergunta feita para Thiago neste capítulo foi: quais imagens do cinema brasileiro o atravessaram? Como um construtor de signos, apaixonado pelo cinema enquanto uma plataforma de arte capaz de expandir muitos sentidos, logo lhe vem à cabeça Glauber Rocha.
“O Glauber é uma paixão de uma maneira que é como seu pensasse como ele. Ele morreu aos 41 anos. Ele mudaria muita coisa se vivesse até os 60. Ele fez muito em pouco tempo, e esse muito que ele fez para muita gente não é compreendido, mas, mesmo esse pouco compreendido pode parecer incompleto, como Idade da Terra (1980), outros filmes mais radicalíssimos assim. Faz todo sentido pra mim porque eu sou um artista visual, quer dizer a galera das artes visuais compreende o trabalho dele. Agora acho um artista pouco valorizado no Brasil. Acho que é um artista que deveria estar no topo de tudo. Um dos filmes que mais gosto dele é O Leão de Sete Cabeças (Der Leone have sept cabeças, 1970), cujo título significa as linhas colonias da África. Acho muito foda que ele cria o arquétipo do guerrilheiro, o barbudo parece o Che, tem o padre missionário no começo, tem os colonizadores, tem um presidente de fachada, é bem teatral, e, simultaneamente, muito pictórico, parece uma pintura.”
Cinema da boca do lixo, Zelito Vianna, os filmes da Atlântida, Mazzaropi e claro, José Mojica Marins. “Zé do Caixão, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), achava geniais. Uns enquadramentos. Pode parecer tosco e ridículo pra muita gente, mas é assim que acho foda.”
“Barbara Balaclava” (2016), Direção, roteiro e pinturas de Thiago Martins de Melo. Distribuição de A Gota Preta Filmes. 14’56”
Revoltas!
Muitas cabeças pairam diante de nós. Cabeças dos tantos que lutaram. Cabeças erguidas enquanto o fogo vocifera contra tudo e contra todos. “Árvore de Sangue e Fogo que Consome Porcos”, pintura de óleo sobre tela de 2013. No ardor das chamas permeiam narrativas sobre povos dessa terra. Povos sofridos em cuja luta a esperança parece estar na força que lhes restam, no exemplo dos de cuja morte fora pela certeza de acreditar que resistir é melhor do que morrer em vão.
Thiago se considera um simpatizante do trotskismo. A luta do operário e do trabalhador em uma sociedade neoliberal corroída é inevitável, algo que a luta dos ancestrais de nosso país pode ter algo de fundamental a se dizer. As revoltas que marcaram a luta dos negros e indígenas, que deram lugar às revoltas de descendentes que lutaram depois, dos que hoje marcham incertos em grandes cidades. O trabalho de Thiago fala de militarismo, afinal é um signo da opressão, assim como a luta que vem do povo pelo socialismo, mas se o olhar se deter com mais proximidade vai encontrar uma "militância espiritual”, como diz o artista: “Lutar pela revolução do sistema, mas também assumindo a sua herança cultural, como os Zapatismo fizeram que é lutar pela revolução, porém com o imaginário da espiritualidade Maia, a luta marxista, relação econômica, mas a cultura não necessariamente materialista.”
Há muitas frentes de lutas no seio da mãe Pindorama. As lutas e revoltas não são separadas de nós, afinal a miscigenação nos faz ter laços profundos com todos os que sofreram para chamar essa terra de casa. Com todo o racismo, com todo o paternalismo, a subjugação em nome de uma certa branquitude. “O fato de eu tratar de questões que são latino americanas, do terceiro mundo, de uma região como o Brasil, basta olhar o povo brasileiro: não tem uma coisa de ser nordeste ou não, o problema são as elites, que infelizmente aqui no sudeste, são muitos distantes do povo, no nordeste não é tão distante.”
“O Brasil, do século 19, se for pegar os grandes pensadores: Arthur Azevedo tem um cabelinho enroladinho; Gonçalves Dias era branco, índigena e preto, o pai era português, mãe era mestiça de índigena e negro. Nunca foi escravizada era uma mulher livre. Machado de Assis era negro. Todos eram branqueados. Trazer imigração era para branquear o sangue. O povo era mestiço. O Brasil de hoje desconhece o Brasil. Na Bahia a mesma coisa, do Rio de Janeiro pra cima vai ver uma diferença grande. O Rio é muito Brasil com toda essa mistura de povos. Esse desconhecimento do Brasil me faz me sentir um estranho, como se fosse uma coisa exótica: Galera somos isso mesmo! Vai à Zona Leste (de São Paulo), qualquer bairro lá é como estar no Maranhão, em termos de visualidade, de se sentir à vontade. Esse estranhamento é mais nas elites, do que do povo, inclusive povo paulista.”
Ao adentrar o ateliê de Thiago Martins de Melo semanas atrás, foi possível testemunhar em suas telas, filmes e esculturas em formação esse desejo de revolta dentro do inconsciente (pegando uma referência de Jung que lhe serve de referência em seu repertório de conhecimento). Não meras revoltas assimiladas somente numa história, num pensamento político. Há uma série de narrativas e símbolos que evocam lutas espirituais das famílias espirituais africanas e indígenas. “Os escravizados quando eles chegaram eles não vieram sozinhos, por mais que fizessem aqueles rituais de retroceder, para esquecer, quando eles chegaram aqui todo mundo tinha guia espiritual, não tinha essa coisa de desgraçado por Deus, não existe, porque a gente não vive uma vida só, nós temos várias encarnações, tem muita gente que nós conhecemos, sempre tem alguém olhando por você e tem a coisa da espiritualidade e muitos desses espíritos vieram, vieram para cuidar num lugar chamado Codó e Codó é a terra dos meus avós.”
Ao final de nossa conversa, Thiago Martins de Melo cita um belo relato do professor e crítico João Cezar de Castro Rocha sobre como trabalhar a leitura, onde a ideia aqui se refere a literatura, mas pode ser ampliada em uma leitura crítica sobre as mais variadas obras de arte, e para o nosso conhecimento nessa nossa breve existência também:
“Pessoal fala que Shakespeare é grande, é considerado o melhor leitor de todos. Ele lia tudo. As coisas mais diferente. Era um grande leitor. Machado de Assis lia tudo também, todos os clássicos. Quando você vê Machado de Assis você vê a grandeza do cara. Você vê a grandeza do cara por ele ser um grande leitor. O grande problema da contemporaneidade é que os novos escritores escrevem e não leem. Eles leem algumas coisas e para ser um grande escritor Castro Rocha cita sobre Shakespeare: Quanto maior o leitor, maior o escritor. Grande escritor é um grande leitor.”