Rosana Paulino. ¿História Natural?. Onde Está a Arte. Número 15.
O painel em exposição na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, da artista paulistana revela muito sobre nós mesmos. Um ensaio sobre o processo do livro que originou o painel.
Ao fundo, caravelas. Inseridas em tons azuis sob azulejos portugueses, as imponentes visões de outro mundo parecem violentamente emergir sob um mar, sob um oceano em alvoroço. A cruz ao fundo é saliente nas naus e caravelas. Adereços acima na imagem cristalizada dos azulejos na descrição dão a impressão de adornos e requinte.
Três imagens saltam a frente dos mares e antigos navios. Ao centro o corpo de uma mulher negra. Com um colar percorrendo o seu pescoço. Os seus cabelos estão cobertos por um turbante branco. Ao seu lado, o perfil de um homem indigena, com adereços de penas de pássaro e um corte no centro da cabeça, deixando um círculo de cabelo no centro e longos cabelos nos ombros. Um com a cabeça à frente, o outro de ponta cabeça. Todos sem rostos. Sem vidas. Sem qualquer dignidade ou identidade.
“A ideia de tirar os rostos, para o fundo borrado, imprimo na impressora digital.” diz Rosana Paulino, uma das mais importantes artistas de nosso tempo e de nosso país. “As pessoas não eram pessoas, nem sequer sombras de pessoas, párias, objetos, coisas a serem exploradas. São imagens feitas para europeus, por europeus, retirar o rosto (na obra) para dar ideia do que são as gentes até os dias de hoje.”
A obra “As gentes”, descrita nos dois primeiros parágrafos acima, está presente no livro de artista de Rosana Paulino chamado ¿História Natural? em uma das muitas páginas do exemplar. Em um total de seis volumes, feitos com um total de mais de 250 imagens, cada página, cada imagem, dobra, recorte, costura, foram feitas a mão pela artista, num extenuante trabalho de preservar as inscrições e títulos manualmente, além de inserir impressões sobre tecido que mantivessem a naturalidade da imagem ou letra sobre o papel. “É uma técnica experimental, dava erro toda hora, até a temperatura do dia tinha que saber qual era porque se tivesse muito calor, se tivesse muito líquido espirrava demais, se tivesse muito frio não dava, então tudo controlado para eu chegar nessa letra, que ela própria, já traz uma informação sobre essa história que está sendo discutida.”
“Dentro de uma semente, de costas, como se o corpo dela fosse uma árvore, eu vou mudando a chave na qual aquela imagem era produzida inicialmente, até ela virar uma instalação.”
As falas de Rosana Paulino presentes nesse ensaio partiram de uma palestra que veio a dar na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, na última sexta-feira (05 de Maio), por ocasião da obra “As Gentes”, de seu livro, estar sendo exibido no hall de entrada da biblioteca, num enorme painel desta página ampliada. Ao final do evento combinamos de realizar uma entrevista mais aprofundada em seu ateliê mais para frente. Portanto, temos aqui muitas de suas falas em pequenos excertos, que selecionei de sua palestra. O mais impressionante é a extensão de seus pensamentos, profundamente lúcidos e inquietantes sobre o que nos é apresentado como o Brasil em uma linha do tempo onde passado e presente se mesclam e se confrontam.
"¿História Natural? vai ser o trabalho que de fato vai entrar de forma mais aprofundada neste estudo, nesta investigação, sobre as pseudociências e o racismo científico, que vai marcar tanto a sociedade brasileira." em determinado momento expôs Rosana que vê no processo de seus trabalhos, a busca pelo cruzamento da história dada, com as experiências ditas científicas na época e as ressignificações pela arte. O racismo científico se depara a artista quando olha para um livro e observa uma imagem: mulher negra de frente, costas e perfil. Como o experimento científico em um ser humano. “A imagem vai me passar de uma maneira absurda, e eu vou tentar entender o que é essa imagem.”
A partir do contato com essa imagem, Rosana busca pesquisar mais e mais sobre a origem de tais registros e chega até a Expedição Thayer, comandada pelo zoólogo suíço Louis Agassiz entre 1865 e 1866, com o pretexto inicial de estudar os peixes da Bacia Amazônica, quando aos poucos, em resumo, suas pesquisas o conduziram a tentar provar uma suposta superioridade da raça branca em meio a populações que aqui viviam. As fotos registradas nessa expedição tem presente nelas um caráter forense, que viria a ser replicado por outros países.
Frente. Costas. Perfil.
De início, Rosana Paulino não sabe bem o que fazer com a imagem. Durante o período de um ano, as imagens ficam guardadas, e ela se dedica a estudar minuciosamente as suas origens e como pensá-las pela ótica da ressignificação pela arte. Assim vai se desenvolvendo seu processo de trabalho e então surge aquela imagem, frente, costas e perfil, da mulher negra na fotografia ampliada dentro de um casulo. “Então faço um primeiro teste colocando elas dentro desse casulo quase uma semente, vou prestando atenção no que o trabalho vai falando, uma das coisas que é mais difícil de ensinar para os jovens estudantes de arte é que o trabalho fala, e a gente tem que aprender a ouvir o trabalho, estava pedindo para crescer, ele cresce, começa com uma A4, onde eu aperfeiçoou essa ideia.”
O casulo se expande. Aos poucos saem de dentro suas ramificações. Assentamento sobre o solo. A vida gera. A vida faz crescer matérias que se desenvolvem no ventre da mãe de todas. A mãe natureza.
Rosana amplia as possibilidade da imagem com o que viria a se tornar a série Assentamentos: “Aquela imagem, frente, costas e perfil, eu penso essa população, na realidade essa mulher vai ser uma raiz, para um país, como o Brasil. Assentamento, a imagem vai sendo manipulada e vou transformando essa imagem, em que sai de uma imagem de uma pseudociência para humanizar essa personagem.”
Em outra palestra, desta vez na Casa do Povo sobre arte e sociedade, Rosana Paulino provocou os ouvintes a pensar sobre as técnicas de tecnologias sociais. Os conhecimentos vindos da África permanecem muito importantes para a população negra. “Tecnologias sociais, questão de pensar o grupo. Pensar como um grupo se fortalece. Falei que a questão das irmandades para a população escravizada, tecnologia sociais, os próprios terreiros, principalmente os terreiros de samba. Pensar nas mães de santo, para manter a ideia de família, e unidade, totalmente destruída pelo tráfico." Lembra também de sua origem, com seu pai e sua mãe que se esforçaram muito para dar uma educação para ela e suas irmãs.
"Ciência não é neutra, nunca foi. Então para fazer esse álbum, esses dois pontos de interrogação são para sublinhar mesmo. É natural essa história?"
A sua produção de colagens no período em que esteve numa residência nos Estados Unidos pela Fundação Rockefeller a fez abrir muitas possibilidades de desenvolver seu trabalho a partir de duas perspectivas: a das Florica Brasilicas, um conjunto de livros com registros de diversos tipos de plantas e flores brasileiras e das imagens da escravidão, como as das realizadas pela Expedição Thayer. “Eu já estava estudando a questão do racismo científico e aí me veio essa ideia de pensar de uma maneira irônica como o Brasil sempre foi visto como um enorme armazém, onde “gente, flora e fauna” estão para ser explorados, essa é a história basicamente do Brasil, uma coisa meio vai e pega, que pode, exploração que a gente vê até hoje no país.”
A produção do livro de artista surge nesse momento. Rosana Paulino percebe que pensar em um livro de história natural a acompanha por um tempo “Quem me conhece sabe que eu adoro biologia, eu quase virei bióloga, tenho um pézinho na ciência, tento sempre conjugar com esse trabalho de artista.” Ganha então uma bolsa da Proac e pode começar a se dedicar a realizar os livros. A série Assentamentos, a instalação que se origina desses trabalhos, também são frutos das leis de incentivo que ressalta terem sido fundamentais para alargar sua produção. O seu conhecimento sobre ciência se torna mais apurado conforme sua pesquisa a conduz a criar esses trabalhos.
E a ciência, sobretudo durante o período em que ela foi investigada e financiada por homens brancos e europeus, exige um olhar mais analítico e crítico sobre suas conclusões e métodos de pesquisa. Paulino frisa que são dessas percepções que surgem as obras de seu livro. “Ciência como qualquer outro ramo do conhecimento, está embutido na sociedade. Está embrenhado na sociedade. A ciência tem um dado fortíssimo em relação a desigualdades, em relação à própria criação de raça. Como a gente conhece hoje, só é possível, através de quando a gente estuda a história da ciência. A ciência vai dar o fundamento para esse conceito de raça que vai justificar o racismo.”
Dessa forma o livro vem a se estruturar em partes que irá compor um todo e se ramificar em trabalhos futuros:
O PROGRESSO DAS NAÇÕES
A SALVAÇÃO DAS ALMAS?
O AMOR PELA CIENCIA?
“Eu não invado, eu levo progresso, eu não mato nem aniquilo, eu salvo as almas, eu não pacifico, porque a classificação vai ser um elemento de subjugação do outro, eu classifico porque eu amo a ciência então também vou desenvolver esses sistemas por amor ao conhecimento. As letras são borradas. As letras que acompanham as páginas do livro, esse borrão tem a função de que essa não é uma história limpa, essa é uma história suja.”
Quando observou as frases desenvolvidas para o livro teve a epifania de perceber que havia um espaço para desdobrar os sentidos em uma nova série de trabalhos que, de forma autônoma, poderiam ganhar novas percepções, impressões sobre tecido vieram a se tornar crias do livro ¿História Natural?, em uma série sobre tecidos e papel.
BRASIL PARAÍSO TROPICAL
Como citei acima, esse ensaio busca perambular pela fala e poética de Rosana Paulino, artista formada em artes pela USP (apesar de na mesma época ter passado na UNICAMP para fazer biologia, mas que preferiu seguir em artes, por sua paixão em desenhar e por observar sua inquietação mais presente nessa área), durante palestras que realizou nos últimos dias em São Paulo.
A frase abaixo é um dos grandes excertos de todas as transcrições feitas de suas falas, a partir da sua série Assentamentos:
“O corpo é um eixo entre o céu e a terra. O céu que vai subindo pela coluna e se espalha, e as raízes que vão aterrar-lá no solo.”
As imagens que cria no seu livro de artista e que pulsam nos espaços nos levam a contemplar a dor mas a esperança. Não uma ingênua esperança, mas uma que resiste para viver pelos seus, pela comunidade e pela família.
As suturas, feitas com aquela linha preta, pesada e grossa penetra a carne para conter o sangramento, são igualmente penetradas na matéria do tecido. Na mulher com o coração exposto da instalação de Assentamentos, com as partes do corpo cortadas e então suturadas com a linha dão a dimensão do trauma, como Rosana Paulino traz em sua fala: “Cortar em partes e suturar as partes. Se você olhar, elas não fecham. Não vão fechar nunca. Essa população não tinha alternativa, ou se refaz ou morre. A violência implícita no ato de suturar.”
O trauma se torna presente no fio das gerações afro-brasileiras no Brasil, nas linhas das árvores genealógicas, no lugar e espaço da presença do corpo negro hoje e nos tempos do tráfico negreiro. Rosana Paulino desbrava e desconstrói essa dor em formas de ascender ao limite do que pode se suportar e enveredar, por caminhos que não escondem a ferida mas cria ramificações que nos conduzem, enquanto país, na compreensão de que há um solo para quem viveu e sofreu, onde afetos foram criados e onde novas gentes se viram unidas em laços maternais, em um lugar que apesar de todas as circunstâncias é parte do chão que sentimos sob debaixo dos nossos pés.