Paulo Miyada. Onde Está a Arte. Número 21. Parte 1.
Curador e pesquisador, suas falas e sua trajetória em diversas instituições merecem nossa atenção. A arte brasileira é renovada com suas proposições em espaços expositivos. Primeiro de quatro textos.
Imaginar um espaço expositivo em que se revele uma arte que nos incita a pensar. Uma exposição ensaística onde expressões criativas se cruzam com a finalidade de apresentar ao público temas que merecem um enfrentamento incisivo à luz da urgência dos acontecimentos. Para muito além da mera experiência estética onde são expostas pinturas, vídeos, esculturas, experiências imersivas, grandes instalações que provocam nada além do que discussões sobre formas, cores, traçados, composições. O imaginar de um espaço em que se germine ideias no público visitante, sensações pessoais de pertencimento com a sociedade, que nos faça despertar para outros vocabulários.
Paulo Miyada se vê defronte a essas proposições em seu trabalho de costurar possíveis interlocuções dentro de uma instituição. Atual diretor artístico do Instituto Tomie Ohtake e curador-adjunto do Centre Pompidou, sua presença nos últimos anos em memoráveis exposições dentro e fora do país se dá em abrir ao público temas inquietantes sobre questões sociais de nosso tempo. Mesmo que sob a luz de muitos fatores, o seu trabalho curatorial para a 34ª Bienal Internacional de São Paulo apresentou um posicionamento pela arte através de uma instituição de grande relevância frente ao negacionismo científico, ao desprezo pela memória e a destruição de nosso passado.
“Faz Escuro, mas Eu Canto” foi o nome dado para aquela mostra, extraída dos versos do poeta amazonense Thiago de Melo. Uma Bienal, que como ele próprio denota, foi marcada pelas diferentes maneiras de se confrontar com a morte.
“A gente vai olhar ao redor e dizer: neste momento, é isso que precisamos ver juntos, algo que pode nos ajudar a refletir sobre certas questões. Questões que discutimos todos os dias, mas que não têm tido a devida atenção. Talvez a arte possa abrir outras perspectivas, oferecer um outro silêncio, até mesmo uma outra opacidade.", diz.
Era uma tarde do mês de novembro de 2023, quando Paulo aceitou o meu convite para uma entrevista sobre seus projetos até aqui, seus pensamentos sobre a prática curatorial nos dias de hoje e o mundo da arte. Tomamos dois cafés na área administrativa do Instituto Tomie Ohtake, em meio a catálogos de exposições da instituição e algumas anotações minhas. Paulo é uma pessoa amável, sua voz é calma, mas sua fala é incisiva, objetiva. Seus pensamentos elucidativos sobre o momento atual são frutos de inúmeras trocas e contatos com diferentes figuras da arte e da produção de cultura nesse país, além da experiência acumulada por sua formação pela FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) e trabalhos nas instituições já mencionadas. Pretendo transcrevê-las com fidelidade e precisão nesse ensaio em um total de quatro partes, um por semana.
Perfil de exatas, paixão por literatura e cinema.
Durante a adolescência, Paulo tinha muitos interesses. Ao mesmo tempo que possuía uma grande afinidade com a matemática e as ciências exatas, desenhava e fazia roteiros com um amigo para uma fanzine que vieram a criar. Passavam a limpo, digitalizavam em primeira e vendiam em eventos de quadrinhos. Seu hobby era absorver as histórias tanto das HQ 's quanto dos livros, sobretudo literatura brasileira, mas também estrangeira: os grandes clássicos o instigava a pensar. Até que veio o cinema. “A segunda área da cultura que mais me interessei e mergulhei foi o cinema. Como cinéfilo mesmo. Especialmente o cinema francês, Godard, Alain Resnais, Jean Rouch. Cinema e ensaio.”
Sua origem familiar remonta aos imigrantes que vieram construir uma nova vida no Brasil. Seus avós paternos, de origem japonesa, eram agricultores e trabalhavam na lavoura com café, depois com a produção de leite no interior de São Paulo. Já seus avós maternos eram de origem portuguesa e trabalhavam como feirantes, donos de bar e de pequenos comércios. Seus pais, ao passarem em Medicina na USP, transitaram para outro contexto social e se tornaram funcionários públicos e obstetras.
Ao decidir qual caminho tomaria em sua vida profissional, ponderou sobre sua habilidade excepcional em exatas, sua paixão por literatura e cinema e a presença de seus pais como médicos. “Comecei a me interessar por uma graduação que fugisse do óbvio, que seria então algo na área de medicina ou engenharia. A opção mais próxima que me permitiria exercer um papel criativo e utilizar minhas habilidades nos estudos foi a Arquitetura. Eu poderia lidar com cálculo e matemática. Tinha a ideia de que projetaria, inventaria e acompanharia a criação de novas coisas. No entanto, eu não conhecia nenhum arquiteto pessoalmente, não tinha nenhum na família e não estava familiarizado com muitos nomes da área.”, diz.
Quando entrou na FAU soube de um professor de história da arte da USP de São Carlos que conseguiu a transferência para o campus da capital, localizado no bairro do Butantã. Agnaldo Farias, importante nome da curadoria de arte no Brasil, tinha acabado de entrar na FAU e em um determinado momento, enquanto não dava aulas, sentou e ouviu a apresentação de um seminário que o jovem Paulo dava naquele dia. Quando terminou, Farias se aproximou e conversou sobre o trabalho que fora apresentado. Durante os seis anos de FAU, Paulo teve uma valiosa interlocução com Farias como professor e tutor. Foi seu orientador em uma iniciação científica, no TFG (trabalho de conclusão do curso) e em um mestrado cujo tema era a Arquitetura Radical dos anos 60.
Paralelamente, Paulo Miyada se envolveu ativamente com o movimento estudantil da FAU. No fervor das interações constantes com os colegas, professores e pessoas em geral, organizou oficinas, exposições, festivais e cenários. “A FAU parece um navio de cruzeiro virado de cabeça para baixo, com muita gente no espaço aberto. É um curso praticamente integral. Não havia aulas à noite, mas chegávamos muito cedo e saíamos muito tarde. Essa dinâmica cria uma espécie de heterotopia, um lugar com uma dinâmica própria. Historicamente, o movimento estudantil envolve muitos alunos da FAU, e eu dediquei muita energia a isso, aprendendo bastante. Foi minha primeira experiência de ativação cultural, organizando oficinas de monotipia, fotografia e deriva urbana, além de 'happy hours' na praça da FAU, debates, seminários de ensino, confecção e divulgação de cartazes, negociações e solicitações de autorizações nos Conselhos. As assembleias eram um exercício de falar em público, ouvir os outros e responder imediatamente. Era algo meio conflituoso, mas muito intenso. E isso também me trouxe muitos amigos.”
Para a conclusão do curso, se viu cada vez mais apaixonado pela ideia de trabalhar com cinema, mais precisamente, em contar histórias reais, ensaios sobre diferentes realidades e vivências. “Eu estava me direcionando para trabalhar com cinema ensaístico e documentários. Meu TCC foi um documentário e, depois, produzi mais alguns. Fiz pequenos curtas e uma animação com o apoio da TV Cultura, por meio de um edital. Comecei a trabalhar muito com meu irmão, que é um pouco mais novo e estudou cinema na USP. Estávamos seguindo esse caminho juntos. Entrar na área do cinema é ainda mais complicado do que entrar na área da arte.” relata.
As inseguranças com que os jovens lidam ao atuar no setor de audiovisual em um país com tão poucos incentivos como o nosso trazia inquietações também em Paulo que confabula sobre as perspectivas para um jovem estudante com muito o que entregar e pouco onde se estabelecer: "Sem um plano de carreira estruturado é difícil conseguir as primeiras oportunidades. É complicado entender como tudo funciona, já que você depende muito de relações pessoais. Essas áreas são menos organizadas em comparação com outras profissões, como direito, administração e mercado financeiro, que têm seus desafios, mas seguem roteiros um pouco mais previsíveis. A arte e o cinema são menos transparentes no que se refere à entrada. Mesmo assim, eu estava tentando por meio de editais."
A curadoria chega em Paulo
Veio então a 29ª Bienal de São Paulo. Agnaldo Farias, um dos curadores chamados para a grande exposição, decide trazer Paulo para ser seu assistente. “Ai que começa esse outro lado”, diz. Em meio a mudanças de gestão na Fundação Bienal, a mostra de 2010 representa um marco na estrutura organizacional que se mantém até os dias de hoje. Se na 28ª, Paulo recorda em nossa conversa, houve a polêmica demonstração de embate com a direção da instituição, com o segundo andar inteiro vazio, com a prisão de pichadores naquele espaço, a próxima mostra teve a missão de trazer novos ares e novos apoiadores.
A Fundação decide então trazer o curador Moacir dos Anjos e esse propõe estender o convite a Agnaldo Farias. "Montaram uma equipe com o objetivo de mostrar pujança, ambição e uma arte politicamente contextualizada, mas também uma experiência sensorial e de percurso muito impactante", diz. "Era uma virada institucional, e então o Moacir convidou a Ana Maria Maia para ser sua assistente, e o Agnaldo me convidou para ser seu assistente. A Ana tinha um pouco mais de experiência, porque em Recife ela atuou em algumas curadorias, acho que mais independentes, mas tinha um repertório e havia organizado um site/revista chamado ‘Dois Pontos’, que promovia discussões sobre arte a partir de Recife. Então, ela tinha um pouco mais de experiência. Eu tinha mais essa vivência universitária."
(Aqui trago uma provocação ao entrevistado. Ao pensar a partir das confabulações que a exposição “Ensaios sobre o Museu das Origens”, presente naquela data no Instituto Tomie Ohtake e no Itaú Cultural, lancei a questão: “Onde está a crítica de arte? Qual o seu lugar atualmente?”, a partir de uma inquietação do próprio provocador, Mário Pedrosa, que decreta, ainda nos anos 70, que já não havia mais espaço para a crítica de arte.)
A resposta que dá à pergunta é elucidativa sob muitos aspectos. Ao inserirmos os papéis de quem pensa as funções do labor artístico e sobretudo da obra de arte em si nos dias de hoje, é possível adentrar nas atuações daqueles cuja proposição é a de elevar o trabalho do artista para ser inserido nas discussões em sociedade. Sob essa perspectiva, Paulo Miyada exercita seu pensamento a partir do trabalho de quatro tipos de profissionais: curadores, críticos e jornalistas, além de refletir sobre o papel do pesquisador em meio a esses.
Algo que notou no começo de sua trajetória nas artes foi a recorrência com que muitos assinavam como curador e crítico de arte. “Eu sempre coloquei curador e pesquisador, porque dentro do que eu entendo como crítica ela é uma função incompatível com a curadoria.”, diz. "Para mim, seguindo uma teoria iluminista, a crítica é um lugar. Nós (curadores) estamos realizando um trabalho que é absolutamente dependente e comprometido com duas polaridades: dependemos e somos comprometidos com a arte, e portanto com os artistas, e também dependemos e somos comprometidos com os públicos, a esfera pública, a soma de audiências, agências e comunidades que formam a sociedade."
Ao pensar sobre o papel dos jornalistas culturais que atuam com as artes plásticas, nota que há “um compromisso de atuar como um duplo, muito fiel ao público” onde o conhecimento sobre a produção artística chega a uma audiência. "É como se ele chegasse antes e produzisse uma informação sobre a arte que facilitasse o acesso do público, aproximando-os de um repertório mais amplo para que se conectem com o que está acontecendo. Seja algo que eles já conheçam ou que venham a descobrir. O objetivo é despertar interesse no tipo de evento em questão. No entanto, se um jornalista escreve de uma maneira que poucas pessoas conseguem entender o que está em jogo, ele não está cumprindo seu papel, mesmo que sua abordagem seja extremamente interessante do ponto de vista da arte e do artista."
Do lado do pesquisador, há a percepção de que, por se tratar de um outro público-alvo, o conteúdo passa por um rigor que se restringe ao espaço onde a mensagem circula. "O pesquisador, por outro lado, lida com um público mais atemporal. Ele está produzindo algo que se espera que se torne informação pública, mas dentro de uma estrutura de saberes, uma estrutura acadêmica e de distribuição de campos de pesquisa, muitas vezes em confronto com fontes primárias. Ele tem o compromisso de tornar seu trabalho público, mas não está comprometido com o entendimento imediato ou com o acesso em grande escala a essa informação. Ele está deixando rastros para que outras pessoas possam pegá-los e continuar o trabalho."
Já com o curador, a relação entre quem vê e quem expõe uma obra são levadas para o campo das negociações. "Ele é um cúmplice tanto dos artistas quanto do público. Podemos dizer que ele negocia expectativas, contextualizações, informações e oportunidades para que o encontro entre a arte e o público aconteça da forma mais intensa, efetiva, transformadora e envolvente possível – use qualquer adjetivo. Dependendo do tipo de arte e do tipo de público, os adjetivos mais relevantes mudam. Enfim, seu objetivo é tornar o encontro das obras com os públicos o mais significativo possível, aumentando a probabilidade de que isso ocorra de maneira impactante."
O trabalho do curador pressupõe responsabilidades para com o visitante que adentra um espaço e se vê diante do recorte de obras expostas. Paulo então coloca as questões que devem ser atendidas por um curador de arte. "Conduzir uma obra ou um artista de forma que se exponha inadequadamente compromete a própria existência ou o campo de significações daquele trabalho. Podemos dizer que é um erro, uma falha, uma falta de ética curatorial prometer ao público a oportunidade de um certo tipo de experiência ou encontro, quando as próprias variáveis que você coordenou impedem isso. Se você promete uma experiência de concentração e imersão, mas a organização do contexto expositivo leva ao ruído, à dispersão e ao caos, você está traindo o público. Da mesma forma, se você está lidando com um trabalho que precisa estar em pé e o coloca deitado, ou com uma obra que lida com nuances e a apresenta de forma simplista e unidirecional, está traindo o trabalho. Estes são exemplos de traição tanto no sentido semântico quanto no físico."
Por fim, com o crítico de arte, todas as relações possíveis passam a se dar no “estado inaugural das obras para com os públicos.” Para Paulo, o indivíduo que atua nessa seara incorpora “um caso específico dos públicos”: "Ele se apresenta como alguém que faz parte do público, da esfera pública, mas com uma profundidade de conhecimento, pesquisa e atenção que lhe permite observar de forma mais elaborada. Sua capacidade de interpretação, associação, comparação, referência, contextualização e julgamento das obras é mais sofisticada do que a média do público."
O chamado crítico de arte, ao seu ver, deve “se expressar de forma clara, legível, que possa ser útil para outras pessoas.” "Ele não está escrevendo um diário; está criando um pensamento público para as esferas públicas. Enquanto no trabalho curatorial a polaridade é de cumplicidade, no caso do crítico é de imparcialidade. Isso não significa neutralidade absoluta, verdade inquestionável ou voz de autoridade. Significa distanciamento para ter autonomia de pensamento. Ao ler um pensamento crítico, percebemos que há subjetividade, ética, busca e um conjunto de valores pessoais inseridos ali. O crítico não fala de forma neutra ou parcial; pelo contrário, tem uma agenda de pensamento público e crítico que contextualiza a discussão de uma obra, exposição, livro, etc., dentro de um arco de pensamento mais amplo. Esse arco se atualiza a cada aplicação específica ou contexto real que enfrenta."
No outro lado da moeda, não deve haver a noção de que o pensamento crítico deve direcionar o modo como o artista ou a obra de arte se comportará com o tempo, pois “cada vez que alguém vê uma obra ou lê um livro, essa pessoa chega a conclusões, sensações e interpretações que não necessariamente coincidem com os desejos, expectativas ou consciência do artista. A grande diferença no pensamento crítico é que ele transcende o plano do inconsciente, das sensações ou simplesmente ‘do gostei ou não gostei’, para se tornar um discurso articulado apresentado publicamente. Esse discurso se manifesta como uma voz distinta, não como uma confirmação do próprio eu. Para mim, quando trabalho curatorialmente, não posso ocupar ambos os papéis simultaneamente. Acho que é humanamente impossível; além disso, seria uma espécie de dualidade. É como se alguém quisesse ser goleiro e juiz no mesmo jogo. É necessário escolher ser o técnico ou o meio-campo. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo; você precisa se concentrar em uma delas, ou então acabará orientando excessivamente."
Paulo Miyada reflete então sobre si mesmo ao elaborar esses papéis de atuações dentro da estrutura de envolvimento em meio à tríade de artista, curador e público. "Para mim, se eu sou cúmplice e estou trabalhando, por exemplo, em uma exposição ambiciosa da Carmela Gross no SESC Pompéia, ou se passei três, quatro anos discutindo com a (Anna Maria) Maiolino para uma exposição que fizemos aqui, ou mesmo em uma exposição menos complexa que trabalhei por um ano com a Leda Catunda, eu não posso observar o trabalho delas com distanciamento completo. Certamente tive um papel, ainda que pequeno, porque não quero sobrevalorizar a influência do curador, mas tive uma participação. Fui parte do caminho daquele trabalho. Minha contribuição é muito menos decisiva do que tantos outros elementos no processo criativo de um artista, mas é uma parte. Estou comprometido tanto com a pessoa quanto com os processos, e como aquele trabalho é apresentado ao público pode ser influenciado pelo meu trabalho."
O texto continua na semana que vem (09/07).