Onde Está a Arte. Um Roteiro para Assinantes. Semana 13.
Duas artistas brasileiras têm suas trajetórias destacadas em exposições de importantes instituições. Entre os possíveis pontos de convergência, destaca-se a ressignificação da linguagem pelo público.
Essa é a décima terceira edição da série Um roteiro para assinantes, que como o nome já diz, será um produto feito para assinantes pagos.
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Agora vamos lá para o apanhado que preparei para os assinantes pagos nessa primeira semana de Dezembro :-)
Semana 11/12
O traço se faz irregular, buscando resultados não previstos, nem mesmo pela própria artista. Lâmina de vidro. Sobre ela, uma folha de papel de arroz japonês,
antes, na superfície da lâmina, é aplicada uma camada de tinta. No verso do papel, sobre o vidro, a unha da artista ou algum objeto pontiagudo tenta dar forma a uma desconcertante imprecisão. Não há cálculos nem modelos predeterminados. Tampouco a intenção de aproximar o desenho de um rigor estético. O caminho é sempre tortuoso, traçado sobre um espaço vazio, transparente e branco. Os traços podem revelar letras, sinais ou meros riscos, desprovidos de qualquer pré-condição.
Para onde vai o desenho? O que esperar desse diálogo rompido com as noções de uma estrutura natural da mensagem? Se há uma clara liberdade no gesto delicado que conduz o traçado, questionam-se, na mesma medida, os limites, as potências e o alcance da linguagem sob a ótica de seu caráter estético.
Mira Schendel desafia os sentidos tradicionais do observador, que se desmantelam ao buscar diálogos com sua obra. A conversa com o interlocutor acontece nos limites da própria compreensão de mundo. A linguagem se constrói e se desconstrói. É necessário um provocador — alguém que exponha a existência do não dito em uma sala escura.
Monotipias é o nome da série de obras descrita no início deste texto. Elas parecem flertar com o limite existencial da forma. O traçado se move como um gesto que dilui o que poderia ser uma escrita ou um signo geométrico. Para um leigo, seria inconcebível imaginar um papel quase vazio, com traços esparsos, como arte, sem compreender os mecanismos que a artista propõe: a aproximação do visitante a um estado primitivo de atenção. Mira Schendel sugere imaginar a ausência de ordenações e permitir que a obra atinja o que não se espera de uma mensagem.
O tempo habita naturalmente a série Monotipias. Os traços se sucedem e se acumulam até alcançarem uma permanência no espaço-tempo. Inseridas em placas de acrílico e suspensas no ambiente expositivo, cada monotipia é um resultado único, impossível de se repetir. Em um período de dois anos, estima-se que Mira Schendel tenha produzido mais de duas mil monotipias em tinta preta sobre papel.
A partir dessa série, a artista aproxima-se da criação dos chamados Objetos Gráficos. Neles, múltiplas monotipias ou datiloscritos são sobrepostos entre duas placas de acrílico. Suspensas no espaço expositivo, essas obras desdobram-se em uma contingência de formas, figuras, letras e signos. A transparência e a sobreposição criam um jogo visual em constante transformação, ampliando os limites da linguagem e da percepção.
Em exposição no Instituto Tomie Ohtake, Mira Schendel - Esperar que a Letra se Forme apresenta uma vasta retrospectiva que organiza o pensamento da artista sobre a matéria do vazio e do preenchimento, explorando ações externas ao objeto imaculado — seja o papel ou qualquer outra superfície. A tinta ocupa espaços, seja com nanquim ou caneta esferográfica. A luz também ocupa, seja por meio de materiais translúcidos ou delineando formas no espaço.
Com curadoria de Galciane Neves e Paulo Miyada, a mostra reúne cerca de 250 obras, entre desenhos, objetos gráficos, monotipias, pinturas, cadernos, recortes de jornais e textos. Destaca-se a instalação Ondas Paradas de Probabilidade (1969), criada para a 10ª Bienal Internacional de São Paulo. A obra é composta por fios de nylon que pendem do teto ao chão, presos a grades quadriculares, criando um espaço etéreo e vibrante.
Nascida em Zurique, Suíça, em 1919, como Myrrha Dagmar Dub, Mira Schendel cresceu com o desejo de aprofundar seus conhecimentos em arte e filosofia. Nos anos 1930, mudou-se para Milão, onde abandonou o que parecia ser um caminho natural para suas expectativas. De ascendência judaica, foi forçada a abandonar os estudos e fugir devido à Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Após o conflito, estabeleceu-se em Roma e, em 1949, obteve permissão para emigrar para o Brasil.
Inicialmente radicada em Porto Alegre, Schendel viveu intensamente o cosmopolitismo de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. Na capital paulista, fez amizades marcantes, como com o psicanalista Theon Spanudis, o filósofo Vilém Flusser e o físico Mário Schenberg. Sua arte, profundamente subjetiva, rompeu com quaisquer restrições ou regras estabelecidas, talvez como reflexo de uma mente moldada pela experiência de exílio e pela necessidade de criar uma lógica própria em um mundo marcado pelo pós-guerra.
Uma frase marcante sobre a trajetória artística de Mira Schendel, que considero particularmente significativa, foi proferida pelo curador Paulo Venancio Filho no texto curatorial da exposição Sinais, apresentada no MAM-SP de 16 de janeiro a 22 de abril de 2018. Essa observação reflete sobre Mira em diálogo com seu tempo e as vivências que a atravessaram no ato de criar suas obras de arte:
“De todas as tendências que ocorreram na arte brasileira a partir do pós-guerra, Mira não se filia a nenhuma, embora esteja sempre atenta, indagando o mundo ao redor do seu canto no mundo. Na Europa, ela possivelmente estaria ao lado daqueles desabrigados do contexto artístico que se foi: o dos grandes movimentos e tendências da primeira metade do século XX. Como artista, o problema de Mira é o mesmo deles – não é aderir ao que quer que seja, a este ou aquele programa artístico, mas duvidar, interrogar ainda mais as práticas tradicionais e recolocar a possibilidade de uma experiência autêntica. Certamente Mira não podia aceitar manifestos, tendências e movimentos e principalmente as certezas de qualquer um deles – é raro encontrar um artista entre seus interlocutores intelectuais. Duvidar, e antes duvidar de si mesma; não uma dúvida pronta, cartesiana, mas uma constantemente renovada, sem esperar ou mesmo sem pretender encontrar resposta.”
Paulo Venancio Filho, em texto curatorial “Mira=Olhe”, presente no catálogo da exposição Sinais, MAM SP.
Em uma de suas monotipias, Mira Schendel inscreve a frase “Nel vuoto del mondo” (em italiano, "No vazio do mundo"). Suas inscrições no papel evocam a ideia de habitar o vazio, de experimentá-lo através do traçado. A escrita ocupa o espaço de maneira fluida e espontânea. As letras surgem sem pretensões formais ou rígidas, permitindo que o pensamento filosófico se entrelace com os significados que a artista extrai de um conceito bíblico e de uma noção existencialista do tempo.
Os curadores da exposição Esperar que a Letra se Forme, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, Galciane Neves e Paulo Miyada, refletem sobre o alcance das inscrições de Mira Schendel no interlocutor. “Mira ousou traduzir a vida em símbolo – no seu caso, a letra”, afirmam. O projeto expográfico destaca as monotipias suspensas no centro do ambiente, criando uma experiência vertiginosa para aqueles que se permitem ser tocados por elas.
Em outro momento, os curadores analisam como a obra de Mira dialoga profundamente com sua própria vida. Eles imaginam o processo de criação de seus trabalhos em ressonância com as palavras da própria artista, traduzindo a existência em formas que transcendem o tempo e o espaço:
“Como a própria artista anotou, no mesmo datiloscrito em que considerou ‘esperar que a letra se forme’, Mira queria surpreender a si mesma com a urgência em dar sentido ao efêmero, enquanto estimulava-se com o desejo de fazer coincidir a vida e as palavras (“reino da linguagem”): ‘A sequência das letras no papel imita o tempo, sem poder realmente representá-lo. São simulações do tempo vivido, e não capturam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo’.”
A obra de Mira Schendel é um evento que transcende o tempo. Cada detalhe merece ser esmiuçado, pois é neles que encontramos significados que vão além de nós mesmos.
Instituto Tomie Ohtake
Rua Coropés, 88, Pinheiros
São Paulo/SPDe 21 de Junho a 15 de Setembro
Terça a Domingo, 11h às 19h. Fechado às segundas
Fonte adicional: catálogo exposição Sinais, MAM SP, 2018.
Escrevi esse ano sobre a exposição ‘Transparências’ de Mira Schendel na Galeria Luisa Strina. Pode ser lida aqui no link.
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