O levante de Varsóvia, ecos na arte e na literatura. Onde Está a Arte. Número 12.
Observar o horror do nazismo nunca foi tão necessário. Sob as formas dadas pela arte, pelo cinema e pela literatura, em três obras escolhidas aqui, uma homenagem aos 80 anos do levante em Varsóvia.
O som da marcha podia ser ouvido à distância. Em um refúgio prestes a sucumbir à dor de resistir ao horror por suas mãos e as de seus próximos, mãos feitas de carne e sangue. A marcha podia ser ouvida outra vez a uma distância cada vez menor. Os rostos abatidos se entreolharam ao som dos corações palpitantes. O gueto de Varsóvia não iria se render, o medo não iria os paralisar. Eram 400 mil ali. Honrosos cidadãos poloneses. Após as deportações, restaram 60 mil. Um número que não dá conta dos sonhos e histórias de vida.
O partido. Os paramilitares. A ideologia do mal. Viria cumprir com seu intento. Heinrich Himmler, ministro do Interior de Hitler, nos primeiros meses de 1943 determinou que o gueto fosse varrido. Como pó no chão, como sementes no jardim, como restos de transeuntes das ruas. Jovens homens, mulheres, senhores e senhoras abriram um flanco contra os nazistas. As poucas armas e mantimentos foram utilizadas para manter vivas as pessoas ao redor. Muitos queriam evitar o confronto, a revolução armada, por razões religiosas. O sentimento de pertencimento os uniu, entretanto, a lutar até onde fosse possível.
19 de Abril é marcado por memórias de quem testemunhou a história. Até mesmo por seus descendentes e todos aqueles que sentem a dor do horror. Todos os que leram, ouviram e aprenderam sobre esse terrível dia no ano de 1943.
“Tu n’as rien vu, à Hiroshima”, diz o homem em Hiroshima, mon amour, filme de Alain Resnais exibido pela primeira vez em 1959 no festival de Cannes. “Você não viu nada em Hiroshima”, ao se referir a tragédia da bomba em solo japonês no fim da Segunda Guerra. Só quem viveu sabe.
Nos 80 anos do levante de Varsóvia, na Polônia, três obras: das artes plásticas, do cinema e da literatura podem nos fazer olhar para além do horror perpetrado por nazistas em sua ignomínia de varrer todos que não se alinhassem com sua ideologia do mal, mas à memória dos que permanecem vivos em registros.
Boris Lurie e as imagens de seus inquietantes pensamentos
Arte, Luto e Sobrevivência. A exposição presente no Museu Judaíco nos faz lembrar das marcas permanentes do horror de se ter vivido como um prisioneiro dos campos de concentração. Boris Lurie (São Petersburgo, antigo Leningrado, Rússia, 1924 - Nova York, EUA, 2008) testemunhou a história com os olhos de um jovem que viu pouco a pouco sua existência dilacerada pelo medo, pelo luto e pela sobrevivência. Ao lado de sua família, parte para Riga, na Letônia, com o objetivo de escapar do sofrimento causado pelo novo regime comunista da União Soviética, sobretudo nos negócios da família. Boris era o terceiro e mais jovem dos filhos de Shaina, uma renomada dentista e de Ilya, um homem de negócios.
Quando tinha 16 anos, Boris testemunhou a invasão nazista em Riga. Seis semanas após enviarem a família para um gueto, os nazistas e oficiais letões massacraram a avó, a mãe, a irmã e a namorada do artista além de aproximadamente outros 25.000 judeus na floresta de Rumbula. Boris e seu pai sobreviveram ao resto da guerra em uma série de campos de trabalho e de concentração.
Anos depois de servirem em campos dos nazistas, em abril de 1945, com os Aliados se aproximando, os nazistas evacuaram Magdeburg (onde Boris e seu pai se encontravam em extenuantes trabalhos forçados) em uma marcha forçada. Boris escapou, escondendo-se no sótão de um prédio bombardeado. A fim de evitar a recaptura permaneceu escondido até que os americanos libertaram Magdeburg oficialmente uma semana depois.
Boris voltou — livre e animado — para procurar o pai. Quando chegou ao acampamento, Boris caiu em um sono febril que durou dias, acordando para encontrar Ilya, seu pai, ao seu lado.
Após esse momento conseguiram emigrar para os Estados Unidos em 1946, onde muitos judeus se viram depois da guerra. Aos 22 anos se encanta pela arte.
“Boris Lurie produziu quadros e objetos com a estrela amarela, inclusive usando peças de roupa íntima, como cuecas e corseletes. Negando-se a esquecer, sua indumentária continuava a testemunhar uma sobrevida impacificável.”
Felipe Chaimovich, curador da exposição no Museu Judaico de São Paulo
Na presente exposição no Museu Judaico, é possível observar, pela primeira vez no Brasil, um recorte de trabalhos icônicos de sua trajetória. Influenciado pela pop art, pelo expressionismo e obras escultóricas com enorme evocação à presença de objetos a fim de traduzir traumas, muitas de suas obras possuem a mesma estrela amarela que os judeus eram obrigados a carregar nos campos de concentração. (o próprio artista manteve o costume de carregar em suas roupas a estrela amarela, para invocar a presença dos judeus e de seus familiares consigo).
Um dos precursores do movimento “No Art”, movimento radical de vanguarda anti-art-establishment iniciado em Nova York em 1959 ao lado de seus parceiros Sam Goodman e Stanley Fisher, eles começaram com exposições na March Gallery na 10th St. em Nova York com o intuito de criticar a cultura de consumo e das utilizações da arte para esse intento:
“As origens da NO!art brotam da experiência judaica, enraizada na maior comunidade judaica do mundo, Nova York, um produto de exércitos, campos de concentração, artistas Lumpenproletariat. Seus alvos são a intelectualidade hipócrita, a manipulação da cultura capitalista, o consumismo, os americanos e outros Molochs. Seu objetivo é a auto-expressão descarada na arte, levando ao envolvimento social.”
A exposição vai até 09 de Julho no Museu Judaico de São Paulo
Longos três minutos, uma história
“Das habitações judaicas em Nasielsk, na Polônia, não existe mais nada. A única coisa que permanece é o vazio.”, diz a voz sobre filmes antigos de pessoas. Pessoas comuns que acompanham a lente de uma câmera, como se buscassem na luz do objeto uma atenção. Uma atenção por suas existências.
Glenn Kurtz ao vasculhar os pertences de sua família, na casa deles na Flórida descobre filmes caseiros, já desgastados pelo tempo. Ao perceber que segurava em suas mãos um documento histórico do tempo de seu avô David, foi tomado por um choque. Seus avós junto de amigos foram passar férias na Europa em 1938 e registraram imagens da cidade natal do avô. David veio para a América para ganhar dinheiro e de sua Polônia permanecera a memória de sua infância em bairros de judeus. As imagens registradas com sua câmera foram os únicos registros de Nasielsk, as primeiras de que se tem notícia.
Um ano depois dessa gravação. Os nazistas invadiriam o local. Inicialmente colocariam centenas de pessoas para dentro de uma sinagoga. Fechariam as portas. No final de 1939, as pessoas visíveis no filme e todos os judeus em Nasielsk foram deportados para guetos e depois enviados para o campo de extermínio de Treblinka.
Corta. Voltamos a 1938. O filme mostra dois homens adultos que observam a câmera. É possível observar dezenas de crianças curiosas com o objeto que emana luz. Ao fundo uma senhora sai de dentro de uma porta e olha para fora. O lugar de onde sai é a sua mercearia, podemos notar. Jovens brincam, querendo se exibir para a câmera. Um senhor de barbas longas e brancas, vestindo uma longa vestimenta preta, observa o objeto que os grava. Crianças pulam a medida que a câmera é estendida para a altura dos prédios. Sorrisos, rostos intrigados. Logo aparece a praça central de Nasielsk, suas árvores que pareciam resistir ao tempo. Cenas no interior de um estabelecimento. Podemos ver apenas as silhuetas. O filme está escuro, mas as luzes da rua iluminam o máximo que se pode. É possível ouvir o som de música americana. Uma mulher puxa os braços de um homem. Para dançar? Para provocar? É um momento de descontração. Olhares das crianças agora pairam sobre a câmera que registra os visitantes americanos saindo de uma casa. O carro preto do lado de fora. Semblantes curiosos tentam estar no filme, o máximo que podem.
Essas descrições abarcam o período de três minutos. Dos rolos, deteriorados temos essa duração. O documentário “Three Minutes, A Lengthening” dirigido por Bianca Stigter revela sobre os filmes gravados no final dos anos 30 uma extensão daquelas vidas perdidas. Produzido pelo cineasta Steve McQueen (Shame, Viúvas, Small Axe) e narrado pela atriz Helena Bonham Carter, o documentário está no É Tudo Verdade 2023, festival de filmes documentais que ocorre em São Paulo e Rio de Janeiro, simultaneamente.
Um vestígio do tempo. Ode a memória. Um estudo do tempo. A dor da perda percorre aquilo que vemos como prestes a desaparecer. Não o filme, que sobreviveu, mas as pessoas que apareciam nas lentes da câmera. As recordações dos que, após uma minuciosa pesquisa empreendida por Glenn Kurtz (que publicou um livro sobre esse pequeno filme de seu avô David), vieram a testemunhar e a aparecer nos filmes de 1938 dão eco a um passado registrado e que parecia esquecido.
É Tudo Verdade. IMS Paulista. 23/04/2023 às 12h00. Gratuito.
Os sonhos dos que habitavam a Alemanha nazista
Seriam mil anos. O projeto de Adolf Hitler era conduzir a duração de um regime pelo tempo irreal de centenas de décadas. Os alemães que viveram um bom período de inovação e criatividade, após o Tratado de Versalhes na chamada República de Weimar, aos poucos perceberam o ressentimento tomar conta. Grupos paramilitares e cidadãos (de bem?) promoviam aos poucos atentados contra a estabilidade.
No inconsciente, muitos se viram no meio do que de pior poderia acontecer. Outros já vivenciavam a invasão de privacidade e tornavam a temer se expressar com o padeiro, com o dentista, com o leiteiro. Quem poderia imaginar que estavam todos submissos ao medo e ao terror.
“A unica pessoa que tem uma vida privada na Alemanha é aquela que dorme”, disse certa vez Robert Ley, chefe da organização do partido nazista. Diante da impossibilidade de expressar aquilo que guardavam, suas agonias, fobias, angústias, Charlotte Beradt, uma jornalista alemã e judia, resolveu iniciar uma pesquisa que a levaria a mergulhar no subconsciente de pessoas ordinárias, sem qualquer preocupação até então, a não ser o de ganhar suas vidas no trabalho e nos estudos. Entre 1933 e 1939, ela conseguiu, com ajuda de outros cidadãos que pôde confiar, somar relatos de sonhos que diversas pessoas tiveram, um total de 300 relatos.
“Vou me esconder do chumbo. A língua é chumbo, chumbo cerrado. O medo vai passar se eu for toda de chumbo. Ficarei deitada, imóvel, chumbo fuzilado. Se eles vierem, direi: Gente feita de chumbo não consegue levantar.” Uma mulher relata em um de seus sonhos. A escritora, Charlotte Beradt, analisa o sonho e percebe que o verbo levantar está na origem da palavra levante. Algo que a mulher se mostrará incapaz de perceber diante do seu medo. O chumbo, pesado, a faz ser tomada pela incapacidade de se mover, de se mergulhar no torpor.
Outros relatos compõem, através de comentários precisos de Charlotte Beradt o livro Sonhos no Terceiro Reich (Fósforo, 2022). Nele há outros alemães que intuem nos sonhos a insurreição, a revolução, o levante. Outros sucumbem à paralisia. Há ainda quem sonhe em fazer parte do nazismo, mas se sente enojado. Todos os relatos guardados na escuridão da noite. O sono como um lugar onde se assemelha os traumas de uma vida impossibilitada de ser vivida na vigília.
O trunfo desses relatos estão na análise do espaço dos sonhos como uma extensão do que se passa na vigilia, reservada as suas formas oníricas e surreais construídas enquanto adormecidos. O psicanalista Christian Dunker faz uma apresentação bem elaborada das fases em que o sujeito se encobre com suas preocupações. “(…) o sonho nos apresenta uma curiosa combinação de fatos futuros e passados imersos em uma situação de perturbação do presente.” Os sonhos têm uma estrutura de ficção, ele diz. A realidade e a loucura. Não há verdade alguma na loucura, vão dizer os totalitários.
O que pode ser mais real, o sonho ou a vigília? Acordar pode acontecer ao dormir, em um estado como esse. Quando a realidade se torna demasiadamente inacreditável, o sonho às vezes pode nos proporcionar uma razão maior.
A Casa do Povo, um lugar por si só, palco de resistências e lutas, surgido no ano de 1953 como um monumento, mais que isso um memorial às vítimas do Holocausto, realizará diversas ações no bojo dos 80 anos do Levante do Gueto de Varsóvia. Segue abaixo a programação que vai até 16 de Maio.