Ô abre alas que eu quero passar! Onde Está a Arte. Número 7.
Peço licença pra poder desabafar. A jardineira abandonou o meu jardim. Só porque a rosa resolveu gostar de mim... Ô Chiquinha Gonzaga!
Em clima de festa e alegria, nessa semana selecionei onde a arte pode nos levar em tempos de carnaval. Poesia, contos, pinturas, canções, filmes.
Viva a alegria nessa tristeza de país!
Poema de Mario de Andrade.
Carnaval Carioca (1923)
a Manuel Bandeira
A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos
Bulhas de cor bruta aos trambolhões
Setins sedas cassas fundidas no riso febril…
Brasil!
Rio de Janeiro!
Queimadas de verão!
E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu.
Carnaval…
Minha frieza de paulista
Policiamentos interiores,
Temores da exceção…
E o excesso goitacá pardo selvagem!
Cafrarias desabaladas
Ruínas de linhas puras
Um negro dois brancos três mulatos, despudores…
O animal desembesta aos botes pinotes desengonços
No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.
Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos
Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor
Risadas e danças
Batuques maxixes
Jeitos de micos piricicas
Ditos pesados, graça popular…
Ris? Todos riem…
O indivíduo é caixeiro de armarinho na Gamboa.
Cama de ferro curta por demais,
Espelho mentiroso de mascate
E no cabide roupas lustrosas demais…
Dança uma joça repinicada
De gestos pinchando ridículos no ar.
Corpo gordo que nem matrona
Rebolando embolado nas saias baianas,
Braço de fora, pelanca pulando no espaço
E no decote cabeludo cascavéis sacoteando
Desritmando a forçura dos músculos viris.
Fantasiou-se de baiana,
A Baía é boa terra…
Está feliz.
Entoa atoa a toada safada
E no escuro da boca banguela
O halo dos beiços de carmim.
Vibrações em redor.
Pinhos gargalhadas assobios
Mulatos remeleixos e buduns.
Palmas. Pandeiros – Aí, baiana!
Baiana do coração!
Serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos,
Este cachorro espavorido
Guarda-civil indiferente,
Fiscalizemos as piruetas…
Então só eu que vi?
Risos. Tudo aplaude. Tudo canta:
– Aí, baiana faceira,
Baiana do coração!
Ele tinha os beiços sonoros beijando se rindo
Uma ruga esquecida uma ruga longínqua
Como esgar duma angústia indistinta ignorante…
Só eu pude gozá-la.
E talvez a cama de ferro curta por demais…
Carnaval…
A baiana se foi na religião do Carnaval
Como quem cumpre uma promessa.
Todos cumprem suas promessas de gozar.
Explodem roncos roucos trilos tchique-tchiques
E o falsete enguia esguia rebejando pelo aquário multicor
Cordões de machos mulherizados,
Ingleses evadidos de pruderie,
Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores
Desgringolando em lenga-lenga de milonga,
Polacas de indiscutível índole nagô,
Yankees fantasiados de norteamericanos…
Coiozada emproada se aturdindo turtuveando
Entre os carnavalescos de verdade
Que pererecam pararacas em derengues meneios cantigas,
[chinfrim de gozar!
Trecho extraído de publicação do site da editora Bazar do Tempo
“A Lira do Delírio", direção de Walter Lima Júnior, de 1978.
Um clássico do cinema nacional, com a presença de grandes nomes do periodo que ficou conhecido como “pornochanchada”. O último filme de Anecy Rocha.
As papangus de Bruna Amaro
O corpo das mulheres ocupam um espaço e um figurino utilizado tradicionalmente por homens em cortejos de carnaval. A artista paulistana Bruna Amaro dá vivacidade à celebração do carnaval em figurinos com muitos paetês e tecidos diversos. As máscaras são indispensáveis para dar vazão à brincadeira, entoado por cantigas por mulheres em performances já realizadas inclusive fora do país.
Recomendo uma olhada na beleza de seus trabalhos em sua página do Instagram.
Trecho do conto “Restos de carnaval”, de Clarice Lispector
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.