Izabela Pucu. Onde Está a Arte. Número 22. Parte 2.
Em sua pesquisa, descobre os esforços de Mário Pedrosa em reconstruir um museu. Seus achados ganharam vida em uma grande exposição. Última parte do ensaio sobre a grande pesquisadora e curadora.
Pedrosa e a exposição Museu das Origens
Era madrugada. A cidade do Rio de Janeiro adormecia quando as chamas abriam espaço para uma destruição nunca vista. Era 08 de julho de 1978. Era uma manhã de inverno, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi consumido pelo fogo e com a enorme combustão, 90% do acervo do Museu é destruído, em um rastro de cinzas. Havia trabalhos de Pablo Picasso, Salvador Dali, Joan Miró, Henri Matisse, Rene Magritte, Candido Portinari e Di Cavalcanti. Além de um total de oitenta pinturas da fase construtivista do pintor uruguaio Joaquín Torres García, que eram mantidas no espaço para uma exposição que ocorreria naquele espaço: uma retrospectiva de sua vasta produção. Durante aproximadamente uma hora, tudo se foi. A biblioteca (algo aproximado a nove mil volumes) desapareceu por completo. Restou apenas cinquenta obras, e o acervo da cinemateca.
Após tragédia veio a pergunta, “E agora?”.
Mário Pedrosa veio então a presidir o projeto de reconstrução do MAM Rio. Sua proposta era um tanto ambiciosa. Para o crítico de arte, a gestão do museu já vinha dando mostras de fragilidade antes do incêndio. Imaginar o futuro deveria ocorrer de mãos dadas com o passado, na forma de um museu integrado por diversas vozes “encontrando num mundo originário um vínculo afetivo capaz de mudar um sistema capitalista em decadência que era também a tragédia da cultura” (SANT’ANNA, 2019).¹
Das cinzas do museu, seria restaurado o mesmo prédio projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy para acondicionar os museus de Arte Moderna junto dos museus do Índio; e do Inconsciente, que já existiam, e os museus do Negro; e das Artes Populares, a serem criados. Todos em um único espaço. Em constante diálogo com as origens de um continente. Com a alcunha de Museu das Origens.
Houve uma enorme relutância do campo cultural na época com essa ideia. E o projeto nunca saiu do papel. Rastros desses pensamentos ficaram guardados nos muitos textos e cartas trocadas entre o crítico e diversas pessoas do meio. "Acredito que a elite se espantou com isso, e havia um conservadorismo também. É compreensível que uma parte dos artistas desejasse que o MAM se voltasse exclusivamente para a arte conceitual experimental, pois havia uma área experimental em disputa. Quando o MAM pegou fogo, já havia uma série de forças em confronto. O pessoal da Arte Experimental dos anos 70, que estava em torno do MAM, queria que o museu se dedicasse exclusivamente a essa vertente. No entanto, a perspectiva de Mário Pedrosa era muito diferente. Ele desejava que todas as forças do campo cultural estivessem reunidas em diálogo, promovendo uma democracia cultural. Isso é algo que estamos vendo agora, impulsionado pelo amadurecimento dos movimentos sociais e sua apropriação pelo mercado. Essa mobilização sociocultural é muito significativa. Um marco importante é 2013, que, juntamente com a Constituição de 1988, representa um momento em que as pautas identitárias começaram a ganhar uma força considerável, movimentando as placas tectônicas do sistema cultural e do sistema de produção social, não apenas das artes."
A crítica em Pedrosa vinha diretamente de seu discurso político. Trazer quem não pertencia àquele espaço para integrar. Para Pucu, essa crítica se dava no “modo de fazer” para que as estruturas mudassem por completo e abrigassem algo genuinamente novo. Não uma repetição do que os países do chamado primeiro mundo replicavam por toda parte. Formar as bases para um pensamento que produzisse uma nova realidade.
O que vemos hoje é o fracasso de um modo de se lidar com o conhecimento proveniente da arte, por assim dizer. Replicamos modelos excludentes, “para depois vender os processos de inclusão, de apropriação”, como pontua Pucu. "‘Vamos transformar isso em cinco museus, que coexistam em diálogo, aproveitando a estrutura existente, com um ajudando o outro em termos de acervos, estruturas e equipes. Pretendemos colocar no mesmo patamar as artes populares, as artes modernas, as artes das crianças e dos loucos, e criar também um museu dedicado à arte negra, que abordasse a cultura afro-brasileira.’ O que Mário Pedrosa estava propondo era o MAM como uma comunidade—ele mesmo escreveu sobre isso. Ele estava propondo uma arte comunitária, algo que já estava presente em vários de seus projetos instituintes. Para mim, os projetos de Pedrosa, desde os anos 40 até o final de sua vida, são extremamente esclarecedores. Foi então que comecei a me comprometer com a difusão do pensamento de Pedrosa."
A exposição Ensaios para o Museu das Origens, que ocorreu simultaneamente no Instituto Tomie Ohtake e no Itaú Cultural foi fruto da longa pesquisa de Izabela Pucu, sobre a história do MAM Rio após o incêndio fatal. "Minha pesquisa sobre o Museu das Origens, desenvolvida ao longo de 10 anos, constitui todo aquele núcleo da exposição. Esse trabalho é resultado da minha investigação pessoal."
Ensaios… é estruturada pelas relações que se deu no processo de curadoria de Izabela Pucu. Durante a sua tese, quando se debruça a estudar Pedrosa, surgem as questões das institucionalidades de forma crítica. Com ela o surgimento da Museologia Social, gestada no contexto do Chile de Salvador Allende. As muitas ações que hoje pulsam vivas por movimentos culturais que buscam resistir em meio a falência do estado capitalista neoliberal, o chamado capitalismo tardio.
"O Museu das Origens foi rejeitado veementemente por todo o sistema da arte—pela elite, pelos artistas e por todos que consideravam o projeto ultrapassado, pois ele ameaçava as estruturas estabelecidas. Era uma proposta instituinte, uma perspectiva radicalmente democrática que não interessava às elites culturais, que preferiam manter seus espaços exclusivos. Essa mentalidade permanece a mesma até hoje.”
Link para o seminário que ocorrerá neste ano entre os dias 23 de Setembro e 27 de Setembro a partir das Politicas da memória, no contexto da exposição Ensaios para o Museu das Origens, no Instituto Tomie Ohtake.
“Quando estivemos envolvidos no processo de curadoria, eu defendi fortemente que essa abordagem fosse a base da exposição. Aproximamo-nos dos contextos sem uma estrutura pré-estabelecida. Algumas pessoas demoravam a entender nossa proposta, pois estavam acostumadas com curadores que chegavam com exigências específicas. Nós, por outro lado, queríamos construir uma exposição a partir de uma proposta de institucionalidade utópica."
Participaram da exposição Ensaios para o Museu das Origens, as instituições:
Museu do Índio
Museu de Imagens do Inconsciente
Museu de Arte Moderna
Museu da República
Museu Histórico Nacional
Museu do Negro
Museu de Arte Moderna da Bahia
Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará
Parque Nacional da Serra da Capivara
Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP)
Museu Afro Brasil Emanoel Araujo
Fundação Bienal
Acervo da Laje
Bloco Carnavalesco
Loucura Suburbana
Cais do Valongo
Museu das Remoções
Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville
Museu do Homem do Nordeste
Museu Paraense Emílio Goeldi
Museu Marajó
Rede de Museus Indígenas do Ceará
Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos
Museu da inconfidência
Mina Du Veloso
Casa do Povo
Comunidade Cultural Quilombaque
Discoteca Oneyda Alvarenga
Memorial da Resistência
Museu da Diversidade Sexual
Museu de Arte Osório Cesar
Pucu complementa:
"Observei que a Museologia Social sempre esteve em um espaço secundário, limitada aos contextos educacionais, enquanto a arte contemporânea nunca se engajou verdadeiramente com outras formas de instituição. Não há, de fato, um interesse genuíno nesse campo. O campo contemporâneo está sendo forçado a refletir sobre isso, mas essa reflexão já foi proposta há muito tempo, desde 1972, com uma carta e um documento traduzido do espanhol para o português. Essa discussão já existe e circula há muito tempo.”
“O campo dos museus populares—como museus de favela, museus de terreiro, eco-museus e museus de território—já está elaborando essa nova perspectiva há bastante tempo. No entanto, só conseguimos enxergar isso quando uma figura como Françoise Vergès traz uma visão europeia para nossa realidade. Na verdade, Mário Pedrosa já era um grande repensador dos museus."
¹Sabrina Parracho Sant’anna; Marcelo Ribeiro Vasconcelos. “Do museu de reproduções ao Museu das Origens: reflexões sobre projetos institucionais de Mário Pedrosa”. Sociologias Plurais, v. 7, n. 1, p. 147, jan. 2021. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/sclplr/article/view/79168/42957 Acesso: 18/09/2021.
O papel da crítica de arte no Brasil
No ensaio aqui que faço sobre a curadora e pesquisadora Izabela Pucu surge uma questão feita durante uma gravação feita pela TV Cultura no final dos anos 70, exibida em uma exposição realizada no Itaú Cultural, em 2023, sobre a atuação do escritor, ativista e jornalista Mário Pedrosa em pensar a cultura e a política brasileira (dentro do projeto Ocupação dessa instituição). Me chamou atenção dois momentos: o primeiro foi onde surge o poeta Ferreira Gullar decretando com todas as letras: “Eu acho que Mário Pedrosa é o primeiro grande crítico de arte do Brasil”. E o segundo, onde o próprio Mário Pedrosa diz que já não mais existe crítica de arte, “Porque o tempo não permite mais”. Com essa resposta de Pedrosa, fica a pergunta: onde está a crítica de arte nos dias de hoje? O tempo atual realmente não permite mais pensar com clareza as questões da arte?
Pucu nos oferece uma resposta:
"Com relação ao papel da crítica, acredito que estamos vivendo um momento de transição. Historicamente, a crítica tinha um papel formador, público e crítico. No entanto, com a profissionalização do sistema de arte, a crítica se deslocou para áreas muito especializadas e passou a servir mais aos eventos de arte. Hoje, o papel que, de certa forma, desempenha a função crítica é o do curador, que frequentemente promove suas próprias realizações ou as de determinados artistas.”
“Assim, vivemos uma espécie de encruzilhada da crítica, caracterizada por uma ausência significativa. Atualmente, observamos fenômenos como a adulação, o cancelamento e a produção literária que surge ao lado da obra, complementando-a. Esses novos formatos refletem a complexidade e a mudança no papel da crítica na arte contemporânea."
As pluralizações de ideias tornam o processo crítico estancado, de acordo com Pucu, onde não é possível discordar ou permanecer no mesmo lugar em um diálogo. "Se eu discordo de você, eu te cancelo e te execro. Acredito que não aprendemos a discordar e a sustentar o conflito, mantendo diferentes posições no mesmo ambiente. Parece que perdemos a capacidade de manter essa autonomia existencial, pois muitos enfrentam uma precarização significativa que os força a estar sempre a serviço de alguma estrutura que garanta sua sobrevivência."
O jornal, “como a saída da crítica de arte para um espaço mais público”, veículo de proposições se perdeu com o passar das décadas, tendo por base os anos em que ocorreram as trocas de ideias que fizeram surgir diversos movimentos importantes na arte.
Outro fator que traz aqui é a mercantilização dos papéis de curador e da crítica, em um reflexo de como a arte como um todo se tornou uma mercadoria, no que pode ser lido como “uma espécie de domesticação da crítica.”
Muitos artistas, com a necessidade constante de promover sua produção, seja em redes sociais, seja em eventos através da necessidade de uma rede de contatos constante, torna sobretudo os próprios artistas os maiores críticos de seus trabalhos, de acordo com Pucu. "Há o artista que é supercrítico com seu trabalho. A questão é que, com o desenvolvimento da arte, a crítica deixa de estar apenas de fora e migra para dentro do próprio trabalho artístico. Isso cria uma encruzilhada, pois a crítica agora faz parte intrínseca da arte, e o trabalho artístico nasce já com uma função crítica.”
Pucu continua: “Existem inúmeros trabalhos que lidam com a circulação, reverberação e o efeito do próprio trabalho como elementos internos ao processo artístico. Há uma questão estética que também desafia a crítica, porque quando a crítica se incorpora ao trabalho de arte, não é mais necessário que alguém de fora a faça. A crítica se torna parte do nível estético e poético do próprio trabalho.'"
A crítica da produção pictórica na atualidade é um exemplo que Izabela Pucu traz em sua fala, como uma ausência. Houve nas últimas décadas uma retomada da produção de pintura em telas, porém não se discute mais a qualidade do que é produzido. Todas as falas são feitas para agradar um mercado que deseja vender. "As pessoas estão pintando, e o tema em si parece garantir sua qualidade. Mas, se as pessoas estão pintando, isso não necessariamente reflete sobre a pintura em si. Acredito que precisamos começar a reavaliar e redefinir a função crítica."
A produção de artistas passa por exposições, mas o quanto desses encontros produzem uma troca madura sobre o fazer artístico? Quantos produzem leituras críticas sobre o que é exibido? “Outra questão é a estratégia de criar um trabalho já pensando na sua circulação e, a partir daí, direcioná-lo para grandes museus. Nesse processo, você acaba perdendo espaços de sociabilidade crítica. A condição atual resulta na perda de espaços de sociabilidade e amadurecimento no âmbito público e coletivo, o que prejudica a produção crítica. Hoje, tudo gira em torno de curtidas e legitimação, sem um verdadeiro processo de sociabilidade com carga política e de amadurecimento. É impossível desenvolver isso sozinho, sem se confrontar com outras perspectivas, especialmente quando se consome tudo em formatos reduzidos e limitados."
Em suma, dois pontos cruciais são colocados aqui por Izabela para definir com precisão o estado da crítica atualmente: o empobrecimento da própria forma de circulação e de legitimação. Dois fatores que ressalta serem parte da própria função crítica o fato de estar em crise. “Eu acho que uma boa crítica está sempre um pouco numa perspectiva de crise.”
Sobre o que Pedrosa diria nos dias de hoje, confessa ser impossível de ser pensar, mas que "Acho que uma característica marcante de Pedrosa era seu profundo engajamento com a vida. Ele continuaria produzindo discurso crítico com a mesma autonomia. Pedrosa faz falta hoje."
Por essa razão dedica tanto entustiamo e tempo em trazer a superfície quem foi Mário, o crítico que agia culturalmente e politicamente em prol da sociedade. “Por isso, há seis anos dedico até minha carne à difusão do pensamento dele."
Glória e Mario
Falar sobre Izabela Pucu é imaginá-la diante de duas figuras que habitam seu modo de ser. Quem chegou até aqui já deve perceber quem são. De um lado está Glória Ferreira.
Em suas próprias palavras:
“A coisa mais importante da minha trajetória foi o meu contato com a Glória Ferreira e a maneira como ela me ensinava no cotidiano. As questões que ela me apresentou, como o Estatuto do Artista e o papel da crítica, são as minhas questões. O convívio com Glória Ferreira foi o que mais marcou minha trajetória até aqui. Ela ensinava através da prática, e enquanto trabalhávamos juntas, eu aprendia. Aprendi muito, até mesmo dando risada. O que mais marcou minha trajetória foi, sem dúvida, o tempo que passei com ela.”
Nascida no Maranhão, a presença de Glória Ferreira nos campos de pesquisa e curadoria de exposições marcaram uma geração de artistas no país. Os frutos que deixou em textos e publicações são até hoje uma referência para quem busca entender a arte brasileira que surge nos anos 1960 e 1970. Foi uma das principais responsáveis em jogar luz sobre artistas vitais, dentre estes Lygia Pape (1927-2004) e Hélio Oiticica (1937-1980). Em cursos que hoje são considerados vitais para o pensamento da arte brasileira, ministrou aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV).
De outro, Mário Pedrosa.
“A segunda coisa importante, e a mais recente, que veio através dela foi Mário Pedrosa. Ele foi um divisor de águas na minha vida. Pedrosa me reconectou com minha identidade de artista e ampliou meu entendimento sobre o que significa ser artista. De alguma forma, ele expandiu também minha perspectiva sobre a arte, o que ela pode ser e qual papel pode desempenhar. Isso deu sentido à minha trajetória e me levou a me envolver em muitos outros contextos, além dos estritamente artísticos.”
Em 2006, ao lado de Glória Ferreira, trouxe ao mundo um catálogo para o MoMA sobre o legado de Mário Pedrosa. Izabela Pucu diz que antes do catálogo não havia um grande interesse na obra do crítico. Uma espécie de “complexo de vira-lata”, como cunhava o próprio Mário em seus aforismos, aqui colocada pela tardia atenção, ao que dizia, ser um falso desmerecimento por seu trabalho. Ele vem então a ser celebrado justamente após o reconhecimento do museu nova iorquino. No embalo, uma exposição no Reina Sofia. O Centre Pompidou inicia um projeto que envolve pesquisar mais das ideias do crítico. (Inclusive a própria Pucu foi escolhida pelo museu francês para iniciar uma pesquisa sobre as ligações de Pedrosa com a França. “Que são gigantescas, passei um tempo lá na França. Pesquisas em acervos que será publicado pelo Pompidou.”).
Então, veio a exposição “Ensaios para o Museu das Origens” que trouxe muito da trajetória de Pucu. A presença de Glória estava na aproximação minuciosa com a pesquisa. Em Pedrosa houve o amplo esforço em imaginar novas realidades para a arte. Diz que esse pensamento amplo sobre tudo o que faz ocorre sobretudo “quando você se mete em outros contextos que não é o campo elitizado da arte.” Ela confessa que por ter trabalhado não só em museus, mas em diversas áreas, seu olhar sobre o mundo se amplia em todos os projetos que conduz.
Pergunto se uma exposição de arte a marcou. Acima de qualquer mostra, seja a Bienal de 1998, seja uma que viu de William Kendridge, nada se compara com as experiências reais de ter convivido com Glória, e ter estado imersa em Pedrosa, em suas tantas cartas, documentos e registros.
Sobre Glória, Pucu tem um sonho não realizado: publicar um livro (ou vários) que abarque a trajetória de Glória Ferreira. “Estou procurando uma editora. Se puder, coloque isso para ver se alguma editora se interessa. O livro ainda não está organizado, mas já separei todos os textos em oito seções. Agora, preciso fazer uma organização mais concreta.”
A perspectiva de se lidar com um trabalho de extrema sensibilidade em condições sempre precárias traz uma discussão que Izabela Pucu considera crucial: o papel da mulher em espaços culturais. “Percebi que, frequentemente, apenas as mulheres eram colocadas em posições precárias de liderança... Na verdade, não se trata de ser capaz ou não, mas é que essas posições eram geralmente oferecidas apenas às mulheres, que eram vistas como aptas a atuar em condições muito adversas e pelo coletivo. Isso reflete uma misoginia estrutural no sistema de arte. Se observarmos a subalternidade da área de educação em todos os espaços culturais, veremos que, na maioria desses espaços, quem dirige são as mulheres. Elas continuam sendo usurpadas e silenciadas, mesmo em museus que se dizem decoloniais e em exposições com essa proposta.”
“Ter sido formada por uma mulher foi muito importante para mim, mas também me levou a cair em armadilhas semelhantes às que ela (Glória) enfrentou, como focar excessivamente nas produções coletivas e negligenciar sua própria produção. Eu escrevi pouco sobre Pedrosa, apesar de conhecer muito bem seu trabalho e sua fortuna crítica. Tenho discutido e participado de seminários sobre ele, conheço bem sua obra e a pesquisa que a envolve. No entanto, escrevi pouco sobre Pedrosa porque acabo dedicando mais energia à perspectiva instituinte rara. Isso não diminui a importância do que ele fez; Pedrosa criou condições para a realização de suas crenças. É ambíguo, mas sou grata por ter sido formada por uma mulher, mesmo que isso tenha me levado a me doar excessivamente, como ela também o fez. Hoje, qualquer crítico jovem já tem um livro sobre si mesmo. Glória nunca teve. Até o fim da vida, ela, já idosa, me perguntava: ‘Isso dá um livro?’. É uma auto-sabotagem nossa, pois sua trajetória daria material para uns cinquenta livros.”
Durante a conversa, senti reverberar o encanto de Izabela Pucu por essas duas figuras. Protagonistas de suas vidas, mesmo que tenham se dedicado a pensar em outras pessoas e instituições e pouco a si próprios. Um sinal claro do quanto doaram de seu tempo por algo que acreditavam, um legado que se constrói como em uma costura. Fio por fio. A costura forma uma bandeira. E a bandeira vai parar em uma praça. O vento balança, mas ela permanece hasteada. Nos braços do povo. O povo que faz a sua própria história.