Hélio Melo. Onde Está a Arte. Número 16.
O artista nascido no Acre é celebrado pelo lirismo e contundente crítica ao extrativismo predatório na região, que pode ser lido como uma sinédoque da exploração do capital em todo o país.
Um senhor adentra o recinto sem ser notado. Pinturas de tons esverdeados, que reluzem das imagens a floresta e os seus habitantes se encontram afixadas nas paredes de um modesto auditório. O senhor recatado parece alheio às pessoas e ao próprio espaço. As telas traziam um pouco da vida do seringueiro, da fauna, da flora, da beleza e da violência implícita nos recônditos da floresta e da paisagem retratada. O senhor trazia em si uma pele clara, era magro com uma estatura mediana e vestia-se de forma costumeira, nada que o fizesse se destacar entre os demais. Sua fala era mansa e não se deixava deslumbrar com a quantidade de pessoas que ali estavam para admirar o seu trabalho de arte.
“Seo” Hélio foi e continua sendo conhecido por muitos contemporâneos de seu tempo e por jovens que aprendem desde cedo o que foi que esse homem fez de tão especial. Caminhar pela capital do Acre, Rio Branco, é deparar-se com muitas menções ao seu nome: Hélio Melo. De colégios, ruas e teatro. Quem parar para uma bebida em algum bar ou iniciar uma conversa em um mercado vai ouvir histórias desse artista que criou um imaginário do povo acreano, do povo amazônico, cujos antepassados vieram de seringais e sobreviveram num ambiente abandonado pelos homens do Planalto Central e por seus governantes, ocupado por pecuaristas e expropriadores do sudeste do país.
O relato que abre o ensaio acima vem da professora e escritora Joelma Ferreira Franzini, acreana, que em sua juventude observara o artista transitar por entre espaços na tal exposição que ocorreu no antigo Instituto de Educação Lourenço Filho, em Rio Branco. Encantada com a presença do artista, se aproximou dele e o cumprimentou pelo seu trabalho. Hélio Melo respondeu cordial e discreto. Disse que recorrentemente usava uma tinta extraída do jenipapo, como fazem os indígenas, para seus trabalhos.
No ambiente esverdeado presente em grande parte de sua produção artística de pinturas, desenhos e livretos, vemos uma floresta densa e suave nos tons de sua paleta ao evocar a cor da mata fechada. Homens cortam suavemente sobre os cascos das árvores em riscos precisos, fazendo talhos no tronco da seringueira, de onde são derramadas as brancas seivas, popularmente chamada de “leite da seringa”, para a produção do látex. O trabalho extenuante num primeiro período levou muitos da região a trabalharem com a natureza para a obtenção do látex. Hélio foi um trabalhador que com afinco se inseriu na mata fechada. Até que veio um segunda período onde a extração predatória buscava sugar o máximo possível das árvores até não restar mais nada e os homens “paulistas”, que vinham do sudeste, sobretudo do estado de São Paulo, pensarem em desmatar para a boiada passar e o grão crescer desmedidamente.
Cores nos céus da vida
Hélio Holanda Melo veio a nascer no coração da mata. Vila Antimari, município de Boca do Acre, AM, em 20 de julho de 1926. Sua infância e juventude foi correndo por entre as matas e os animais e logo trabalhando nos seringais Floresta e Senápolis. O pulsar de sua vivência habitava ao lado de seus companheiros um lugar de criação e celebração à natureza. Aos 33 anos saiu do seringal no Amazonas e foi tentar ganhar a vida fora de lá.
Em 1956 segue para Rio Branco, capital acreana, onde abraçaria sua identidade com a dos que ali habitavam. Crises com dinheiro o levaram até ali, mas foi por amor que ficou até morrer, em 2001. Enquanto habitava o mundo, para se sustentar foi seringueiro, barbeiro, catraieiro e vigia.
Autodidata, produzia as tintas de suas pinturas com a extração da seiva de certas espécies de vegetais e desenhava com elas desde os seus oito anos. Não passou da terceira série, por ter de trabalhar para sobreviver. A sua cabeça, porém, voava para lugares muito além dos que ele pisava. Em sua vida foi pintor, escritor, músico e compositor.
Edson Natale, músico, escritor e jornalista, em suas pesquisas sobre Hélio Melo, relata que por entre colegas do artista, ouviu uma das mais belas histórias sobre a arte da música através de sua alegria em criar: em suas caminhadas pelas margens do rio, “Seo” Hélio criava canções ora sem começo, ora sem fim. Num Brasil profundo e distante se ouvia músicas esporadicamente em rádios, se fosse pobre ouviria tocar distante em algum lugar. Pois Hélio ouvia dos navios que passavam pelo rio e criava suas próprias composições sobre os ritmos que conseguia capturar vindo do rádio da embarcação a metros e metros de distância.
As três fases de seus traços e cores
O que as pinturas em diferentes tons esverdeados, ora em tons amarelados, azulados e ora avermelhados (quando surgem as passagens do dia para noite e vice-e-versa) retratam vão além das figuras e cenários. Durante as décadas de setenta e oitenta, a pecuária e a agricultura invadem como nunca antes o território da floresta amazônica. A indignação de Hélio Melo com a destruição do berço de sua existência e patrimônio de toda uma nação e de povos originários o faz voltar para telas que evocam uma personagem, nitidamente essencial, a principal protagonista em suas pinturas, como bem coloca o curador Jacopo Crivelli Visconti sobre a produção de Hélio e sua iconoclastia: a floresta.
As suas telas trazem o quão vasta são as matas. Quão vasta é a diversidade da fauna. Quão vasto são os retratos de uma Amazônia repleta de fenômenos fantásticos. A vastidão então traz essas presenças e as lança em metáforas e construções sutis do quão nocivo e destrutivo é a submissão para o capital, para toda uma biodiversidade, de culturas e belezas. A tinta nanquim misturada com tintas industriais e corantes naturais feitas muitas vezes por ele próprio constroem imagens oníricas, surrealistas.
Os pesquisadores Rossini de Araujo Castro e Norberto Stori, no artigo “O ambiente amazônico nas obras de Hélio Melo”, propõe três fases distintas que se encontram no ambiente e como figura principal em suas pinturas. A primeira será a do Seringueiro, conforme eles apontam “esta fase compreende o período de 1978 até 1984, onde “Seo” Hélio através de suas obras faz uma sociologia do Trabalho na Amazônia. A floresta com toda sua grandiosidade aufere dignidade ao trabalhador florestal e neste espaço da mata representado por “Seo” Hélio, o ambiente é tranquilo, acolhedor, paradisíaco. Esta maneira de representação cria um paradoxo, embora seu trabalho seja penoso, o seringueiro encontra na floresta a razão de viver. Sua pintura é composta por tonalidades de verde, pois para o artista ‘existe um verde vivo e outras cores que ninguém consegue definir’.”
É perceptível nessa fase a ação do individuo na extração, mas de maneira a traduzir a solidão do trabalhador ao fazê-lo no labor de se debruçar sobre o látex que escorre da árvore. A vegetação fechada em cores esverdeadas suaves, quase como se dentro de névoas, iluminadas pelo leve e doce clarão. Há a presença por vez ou outra de animais e eles trocam olhares sejam as claras ou as sombras do homem seringueiro. Em todas, a mata reina soberana.
Em um segundo momento surge por entre a paisagem, um surrealismo mágico. Nessa concepção de ambientes e figuras, a crítica social é latente e perceptível com a leitura proposta pelo artista. Ambos os pesquisadores vão trazer que: “O artista traz para a sua construção poética o distanciamento entre povo e a classe dominante. Tenta, através de metáforas, associar a classe dos mandatários ao animal burro. (…) o artista apresenta uma árvore de tronco forte, alta, acha-se quase no centro da obra, suportando em um de seus galhos o burro, representando o peso da hierarquia financeira, um sujeito patrão, que utilizou da simplicidade dos seringueiros, como degraus para chegar ao topo e desfrutar da condição de dono para desconstruir uma região transformando-a em algo extremamente nocivo para as futuras gerações. O trabalhador está representado bem abaixo da classe social, no chão.”
A sangria de toda a expropriação capitalista na Amazônia tornou homens em bestas, em burros. O próprio burro no galho observa o trabalhador cabisbaixo. São dicotomias aliadas a uma naturalização da situação, onde não há quem defenda a situação dos mais desfavorecidos. Como bem lembra os pesquisadores por décadas a fio, houve um enorme massacre de indígenas de diversas etnias nas fronteiras do Acre e que nos áureos tempos da borracha, os financiamentos para as matanças contra indígenas eram conhecidos como “correrias”, dizimando comunidades inteiras.
No seio de sua produção pictórica, Hélio Melo coroa nessa fase a questão ambiental, que se cruza diretamente com as duas fases anteriores. Os pesquisadores explicitam: “‘Seo’ Hélio procurou fazer a sua parte na tarefa de criar uma cidadania ambiental, promovia palestras em escolas desde a pré-escola até as universidades, hospitais e asilos, contando sua experiência e de outros seringueiros na convivência com a floresta. Discursava sobre as práticas sustentáveis oriundas de uma relação responsável com a natureza, questões como diminuição da pobreza, justiça social e ambiental, qualidade de vida para os trabalhadores extrativistas, mudança no modelo de desenvolvimento econômico-social da Amazônia e da utilização do conceito de construir sem destruir, baseado nos princípios de convivência sadia entre homem e natureza.”
Ao invocar seres mitológicos e folclóricos, tais como “a Mãe Da Mata (que) castiga o caçador que desobedecer ao código mítico de regulação de acesso aos recursos naturais.”, Hélio Melo atesta a sua produção artística como um instrumento de alertar aos seres humanos de sua inconsequente ação sobre o espaço, em uma possível referência que cabe aqui a um saber dos povos originários tão bem explicitado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, onde a natureza é habitada por animais e seres não animais que possuem a mesma percepção humana, de se observar, sentir e interagir com o ambiente que nos cerca. Uma pintura de Hélio Melo, em especial, revela animais que choram sentados.
Nas matas e adentro
A galeria paulistana Almeida e Dale, após receber diversas obras do artista, vem cuidando de uma parte do acervo e iniciado a exibição de muitos desses trabalhos. Até o dia 22 de julho será possível ver de perto pinturas em nanquim e desenhos de Hélio Melo, num desdobramento que inclui uma exposição e um catálogo. O curador e crítico Jacopo Crivelli Visconti, um dos responsáveis pela concepção da última Bienal de São Paulo, assina o projeto curatorial e responde a uma análise preciosa do grande trabalho do artista acreano em sua poética das selvas e da proteção a um meio ambiente brasileiro em constante corrosão.
Estão ali telas em pequenas, médias e grandes dimensões, envoltas na iconografia consistente pelo qual Hélio Melo é lembrado. A fauna se mistura no espaço da floresta, em hibridos com humanos (homem com cara de burro), ou ao lado do homem seringueiro. As cores se alternam com o amanhecer, o anoitecer e a transição de luz e sombras da natureza, imponente, sobre uma floresta, sobre as casas simples de madeira em meio a mata, em composições, figuras e paisagens em verdadeiros mise-en-scéne. O fotógrafo João Farkas, presente em um encontro com o curador na galeria no último sábado (13 de maio), observa que as criações pictóricas de Melo emulam quase que um registro fotográfico. Há a preocupação, sem dúvida, de se observar a construção das imagens no palco da vida amazônica, em constante conflito.
Ao se debruçar ao cuidado, Hélio Melo utiliza dos traços do nanquim para formar imagens etéreas de um tempo que vai além do retratado, é sobre o nosso tempo, injustiças e condições inerentes ao brasileiro. Jacopo diz no encontro que aquele mundo dos seringueiros é quase uma metonímia do que é o Brasil. E vai além ao imaginar as obras como uma atenção do artista para com a vida em natureza. “A floresta retratada por Melo é, ao mesmo tempo, ancestral, mítica e fabulosa, mas também extremamente atual, se pensarmos que, nos pouco mais de vinte anos que nos separam do falecimento do artista, a compreensão que é cabível falar, no âmbito do reino vegetal, em sentimentos e pensamentos comparáveis aos do reino animal, se tornou difusa e aceita.”, escreve o curador no catálogo da exposição da Almeida e Dale.
A imersão nos mais particulares traços revelam uma floresta Amazônica fantástica e surreal para denunciar algo muito mais nefasto. Há no surreal uma inquietação. Hélio Melo caminhava por entre suas obras no modesto auditório do antigo Instituto de Educação Lourenço Filho, em Rio Branco, Acre, quieto e em silêncio. O que estaria pensando o artista? Ao observar jovens e adolescentes, fruindo de uma mensagem clara sobre o que aquele seu pincel fez contra todas as injustiças que viera a testemunhar. O artista nada fez mais do que expressar sua tão forte criatividade e aptidão de poeta das selvas ao transformar tudo em cores, canções e textos. Ele provavelmente ali nessa data incerta pensava em como transformar suas próximas inquietações em sua próxima arte, longe do cânone de qualquer arte brasileira de intelectuais, próximas das dos povos que realmente importam.
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Sou um escritor, colaborador do site e revista DasArtes, formado em museologia e em Curadoria e Expografia pela Escola Artes Visuais (EAV) do Parque Lage.
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