Gustavo Speridião. Onde Está a Arte. Número 8.
Nos planos e nas linhas. Nas palavras e na poética. O artista constrói uma linguagem que percorre a história da arte para evocar novos simbolos e significados.
I
Tela branca. Spray de cor preta. Linhas desenhadas sobre o spray na parte de cima e de baixo da mancha escura. No centro a frase “PERSISTÊNCIA DO TEMPO”. Série Inventário de problemas - São Paulo: Persistência do tempo, 2020. Técnica mista, tamanho 29,7 x 21 cm.
A imagem da imprecisão dos dias em um ambiente onde contra as previsões um homem acorda para sobreviver nas massas. O cinza, o preto e o branco surgem no diâmetro de seus percursos na cidade. Nos planos e nas linhas. 17:03. Sair do trabalho. Chegar no espaço dos dias. Livre para percorrer uma avenida. Inconsciente de sua (e de toda) finitude. Nos espaços que lhe são seus num instante num lugar indeterminado aos sons de sirenes e luzes dos faróis.
II
Em um breve momento, um espaço, uma tela, um bloco de concreto, um gesso, um vazio. Em outro instante pinceladas que subitamente ocupam o espaço e sobre tais superfícies palavras que expressam a existência humana, a tragédia constante dos seres em perspectivas diluidas em duas faces, dois retângulos. As linhas que separam, numa pelicula fotográfica, duas extremidades.
Os espaços podem ser preenchidos para dar vazão às representações das ocupações humanas nas estruturas pré-estabelecidas de nossa sociedade. Como em Dogville, filme do cineasta dinamarquês Lars Von Trier, de 2003. Planos e linhas num piso concreto. Viver é um ato político poderá ter exclamado um grande poeta. Atuar nesses espaços, nessas telas, nesses gessos, nesses gestos podem ser um risco alto demais para quem se acostumou a viver nas entrelinhas de uma sociedade viciada que promove o ganho acima do humano. Sonhar pode ser alto demais para um simples proletário, um cidadão comum que vive para sobreviver. Os olhos sobre o espaço promovem a descoberta do não-dito, do que não foi verbalizado.
NEVER DREW AGAIN, ONLY MADE PLAN. Em uma tela feita sobre técnica mista, com pinceladas em preto que ocupam todo o espaço, é possível vislumbrar como em um grito incontido, dois retângulos postos paralelamente em vertical pintados livremente como em um grande rabisco, a ser precisamente colocados para causar com as palavras uma imagem. As palavras sobre os traços quadriculares são as sentenças inseridas no início desse paragrafo. “Nunca mais desenhei, só fiz plano.”, em inglês.
Essas expressões inquietas e repletas de potências verbais foram feitas pelo artista Gustavo Speridião, um dos grandes novos nomes da arte brasileira de hoje, pela sua inventividade e capacidade de condensar em diferentes suportes e técnicas um minimalismo aparente, quando no cerne de seu trabalho se desdobram linhas de nossa condição humana. Onde a filosofia, a psicanálise, as ciências sociais e políticas se desdobram no uso preciso e inquietante da palavra.
“Nas telas, são como aforismos – algo entre pichações e epitáfios – que conversam entre si, e junto à tinta, às formas, os vazios e a caligrafia, constroem imagens. Juntos, esses elementos testam o limite desses planos. Testam os limites desses corpos. O lugar em que a história da arte ensinou que tudo é possível, que tudo cabe. Mas, como Gustavo nos mostra, as coisas, as palavras tem peso. Até onde o plano/corpo aguenta?”
Fernanda Lopes, curadora. Trecho do texto originalmente publicado na exposição O Inventário de Problemas, de Gustavo Speridião. Cassia Bomeny Galeria, Rio de Janeiro, 2022.
III
Em uma visita a tradicional feira SP Arte realizada ano passado no bairro da Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, me deparei com trabalhos de Gustavo Speridião no stand da Central Galeria.
A galeria tem sido responsável ultimamente por representar artistas que se encontram numa poética instigante sobre a linguagem, incluindo mais recentemente o seminal artista Artur Barrio (Porto, Portugal, 1945 -).
Um trabalho em especial, ali presente, da série “o inventário de problemas”, chamada “same time”, de 2022. A tela apresenta sob pinceladas gestuais azuis, dois quadrados em branco no meio, e os dizeres “SAME TIME NEXT DAY SAME PLACE”. Intensa e provocativa atraia o olhar dos transeuntes. Uma reflexão sobre o uso dos planos e cores de forma convulsiva e libertária. A série pode ser lida como uma extensão de quando o artista imprimia suas fotografias em formato de copião, uma maneira na qual as fotos surgiam reduzidas em uma página. O formato com a qual Speridião imprimia apresentava duas fotos retangulares e um espaço vazio entre elas.
Converso então com a galeria sobre o meu interesse em conhecer mais da obra e trajetória de Gustavo. Recebo no dia 09 de Setembro de 2022 uma mensagem da responsável por relações institucionais da galeria sobre uma visita no ateliê do artista programada como parte dos eventos do fim de semana da ArtRio, no dia 17 de Setembro. Sem dúvida uma oportunidade única de conhecer o processo de trabalho de suas telas, faixas, vídeos, blocos de gesso que tanto despertaram em mim o fascínio por sua poética.
Na manhã do dia 17, as ruas da Gamboa amanheceram ensolaradas. Bairro localizado na área portuária original da cidade do Rio de Janeiro é conhecida pela sua ligação com o samba além de abrigar belas construções coloniais e uma história que mescla a luta de populações negras da cidade por reconhecimento com o esforço de se preservar a beleza do samba e do Carnaval.
Na subidinha da Rua Conselheiro Zacarias é possível ouvir o som dos pássaros de uma manhã calma e serena. Os passos de moradores que levam consigo pelos braços seus carrinhos de bebidas ladeira abaixo para mais um dia que se inicia, outros que seguem os passos para o trabalho ou para o lazer. Paro na frente do número que recebi e sou recepcionado na porta do ateliê por Gustavo, já bem disposto para me recepcionar junto de Maya, a responsável pelas relações institucionais da galeria. Despojado com uma camisa azul de manga curta e calças jeans, ele logo me mostra seus novos projetos e um vídeo onde trabalha os recursos de luz e sombras, algo que é possível observar também nos tons de preto e branco de suas telas, sobretudo nos da incrível série de obras já mencionada “o inventário de problemas”.
O ateliê com belos pisos de cor vinho antigos é amplo, espaçoso e simples, ocupado por telas, desenhos, faixas e os seus trabalhos feitos com gesso. Em uma tela em especial, Gustavo admite que em um certo dia decidiu inserir livremente os dizeres “verme", eletricidade, luz, pagar as contas”. É possível observar como a sua poesia corre solta em inscrições por papéis, pela parede, por objetos. Tudo alcança um ritmo vertiginoso que dialoga com a percepção de realidade na qual vivemos.
Após alguns minutos chega Leandro Barbosa, outro grande artista que faz junto com Speridião as imensas faixas protesto (inclusive ambos dividem a autoria de uma das mais impressionantes faixas exibidas em protestos ocorridos nos últimos anos, como a que diz “NADA SERÁ COMO DEPOIS”, “MARIGHELLA MARIELLE QUANTO MAR” e “A REVOLUÇÃO NÃO É METÁFORA DE NADA”). As palavras aqui ganham a força da necessidade de usá-las para exprimir resistência e questionamentos sobre nós como sociedade diante do imponderável. A palavra é política e é instrumento de luta contra a dor, a injustiça e o esquecimento.
Gustavo acredita no empoderamento das pessoas para que coletivamente possam lutar contra um estado violento e desigual. Em muitos de seus trabalhos é possível observar um questionamento social e político que é levantado de maneira sutil, em poucas palavras que se estendem na reflexão de quem os vê.
Nascido no Rio de Janeiro em 1978, já participou de exposições em Paris e na Bienal de Lyon, em 2013. Obras suas fazem parte de coleções públicas como a do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, a Coleção Gilberto Chateaubriand (Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro), a do Museu de Arte Contemporânea de Niterói e a do Museu de Arte do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Recentemente apresentou muitos de seus trabalhos no Centro Cultural da Justiça Federal no Rio de Janeiro na exposição ”Manifestação contra a viagem no tempo”.
IV
Ao observar os trabalhos de Speridião em galerias e exposições me vem à cabeça a poesia de Mario Cesariny. Surgiram como que sem querer em minha cabeça novamente agora que escrevo esse texto. Nascido em Lisboa, Cesariny é considerado o maior representante do surrealismo em Portugal, tendo sido artista, poeta e escritor de diversas histórias e obras surrealistas durante a sua vida.
Um trecho em especial do poema “You are welcome to Elsinore” me faz pensar no significado das palavras para exprimir a nossa condição humana, tão presente nos trabalhos de Gustavo Speridião.
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas que esperam por nós
e outras frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e sua posição.Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeitaEntre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.Mário Cesariny. Trecho do poema You are welcome to Elsinore, que consta no livro Pena Capital (Editora Assirio & Alvim, 1ª edição, 2021)