Evandro Teixeira. Onde Está a Arte. Número 13.
A fotografia foi a sua vida e dela podemos estar diante da lente de sua câmera nos mais importantes momentos da conturbada história brasileira e chilena.
“A poesia vem comigo, através do tempo ainda da Bahia e depois com Carlos Drummond de Andrade, que fez um poema muito lindo para mim.”
Evandro Teixeira
I
Convulsões de um tempo. Tanques marcham sobre a ameaça da morte. Tiros soam como alarmes. Cavalos e seus cavaleiros do horror marcham para acuar os que gritam por justiça. Brasil. Chile. Antes, Bahia. Irajuba, um pequeno povoado a 307 quilômetros de Salvador. Seu pai, um fazendeiro. Sua mãe, uma dona de casa, “retada” nas palavras da neta. O jovem Evandro era sonhador. Sonhava em ser escultor, gostava de ver a arte que se fazia. Veio a fase de querer ser aviador. Por fim, seu tio Arcelino, irmão de sua mãe, trouxe para dentro de sua casa um belo dia uma câmera fotográfica trazida de São Paulo. Aquilo encheu os olhos de Evandro que pensou poder registrar o mundo, as belezas e as tristezas. As cores e a escuridão. A luz e as sombras. Os primeiros retratados foram seus familiares e os animais da roça. O seu olhar passou a ver e a se ver com aquele objeto e de si o reflexo da fugaz passagem do movimento da história.
O Cruzeiro. José Medeiros (1921-1990), fotógrafo da antiga revista. Era o nome e a persona que reverenciava. Sua forma perfeita de manusear aquele objeto era o que Evandro imaginava, ao folhear as folhas da revista e observar o enquadramento, o jogo de luz e sombras. Depois viriam Eugene Smith (1918 – 1978), Henri Cartier-Bresson (1908 – 2004), Robert Capa (1913 – 1954) e outros tantos que seriam as direções dos que eram bons fotógrafos. Que fotografia era sim capturar o imponderável, mas era ao mesmo tempo a construção da poética do olhar num milésimo de segundo.
Jornal do Brasil. 1963. "Eu não posso ir pro Jornal do Brasil. O JB é a elite e não estou preparado". Evandro Teixeira hesitou de início em 1961. Após uma passagem pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand nos jornais Diário da Noite e o O Jornal, sentindo mais preparado aceitou o desafio de trabalhar ao lado de nomes que eram os maiores e os melhores do jornalismo. “A fotografia viveu uma época de ouro nesse período, especialmente na Ditadura e o JB, especialmente, que era um jornal poderoso, que brigou com o golpe militar. A gente tinha total apoio. Eu fazia aquilo porque eu gostava.”, disse.
II
Durante 47 anos, até o momento em que o Jornal do Brasil veio a encerrar as suas atividades, em 2010, quando parou de circular a edição impressa, Evandro Teixeira permaneceu com a mesma curiosidade, atrás do que suas lentes e seus olhos podiam capturar. Nesse período, viu a história brasileira de cima de prédios, carros, bancas de jornal. Quando entrou no jornal vivíamos um estado democrático com João Goulart na presidência. De repente já não vivíamos mais.
“O jornal me recomendou atenção ao Vladimir (Palmeira, responsável pelas manifestações do movimento estudantil em 1968) aí fiquei sempre colado, fazia, pulava, descia, subia, subia em jornaleiro, era um gato na época. Ali tinha visto aquela faixa “ABAIXO A DITADURA POVO NO PODER”, e eu fiz aquela foto.”, diz sobre o período de 1968 durante os protestos contra a Ditadura, a primeira grande passeata. “E o Alberto Dines (um dos mais importantes jornalistas de sua época, então editor chefe do JB) foi um cara de uma resistência, de uma coragem incrível. E aquela foto foi escolhida para primeira página, pela faixa (…), mas a gente tava na beira do Dines, o Alberto Ferreira, que era diretor de fotografia - tinha um olho impressionante - escolheu aquela foto e nos esquecemos que na sala ao lado havia dois militares, ali sentados e eles viram aquilo, levantaram e ouviram a conversa e vieram arrebentar a foto. ‘Essa merda não vai entrar pra lugar nenhum, que que vocês estão pensando’. Tomaram a foto e rasgaram.”
Um ano depois, em maio de 1969, o Museu de Arte Moderna, no Rio, havia selecionado doze obras para a representação brasileira na 4ª Bienal de Paris, em outubro daquele ano. Duas obras foram arrancadas pelos militares, horas antes da abertura da exposição no MAM com as obras que iriam para Paris. Uma delas era uma fotografia impressa de Evandro Teixeira, A queda do motociclista da FAB, de 1965, onde durante um evento da Aeronáutica o condutor da moto leva um tombo majestoso. Diante da cena, nesse momento, estava Teixeira bem ali que não hesitou. E click. O Brasil não participou da Bienal de Paris daquele ano.
“A maioria das estrelas do fotojornalismo brasileiro estava lá. Era uma honra, um orgulho ser fotógrafo do JB. Nós, fotógrafos, tínhamos até uma página gráfica, no Caderno B, intitulada Onde o Rio é mais carioca. Você tinha liberdade de sair às ruas, se pautar, criar suas matérias e ensaios fotográficos, e tudo sem flash ou fotômetro”.
Evandro Teixeira
O Jornal do Brasil tinha um diretor de fotografia, o paraibano Alberto Ferreira Lima (1932 – 2007), que trabalhou 30 anos no periodico, dos quais 25 como responsável pela Editoria de Fotografia. Ele não permitia o uso nem de flash nem de fotômetro. Evandro considerava Alberto um gênio.¹
O JB foi o primeiro jornal a ter um estúdio fotográfico próprio e a usar as câmeras de médio formato da fabricante sueca Hasselblad, que possibilitavam grandes ampliações com excelente nitidez.²
III
Luz no centro da imagem levemente a direita. Irradiando. Foto preta e branca. A silhueta escura de um soldado. Chuva torrencial cobre o brilho da luz ao fundo que parece sair de um veículo dentro de um galpão do exército. Forte de Copacabana, Rio de Janeiro, 1964. Madrugada do dia 1º. A direita dois soldados de lado parecem conversar, apenas em suas silhuetas. Próximo a eles um canhão cobre toda a parte de baixo da imagem. À esquerda um soldado desfigurado em sua silhueta escura submerge nas sombras.
A fotografia da tomada do Forte de Copacabana é icônica. Nesse período Evandro morava junto de amigos no Posto 6, em Copacabana. Um desses amigos era um capitão do exército. “No dia 1º de Abril, ele passou lá em casa, 5 horas da manhã, disse ‘vamo lá no Forte tá sendo invadido, o golpe militar estourou, você quer ir?’ Claro. Aí peguei a câmera e vamo simbora. Eu escondi minha câmera embaixo da jaqueta jeans (…) aí comecei a fazer aquela foto, tava chovendo, 5 da manhã.”
IV
Na tarde do dia 21 de Março de 2023, uma terça feira, me encontrei com Evandro. Foram algumas palavras e alguns cumprimentos. Chegou no espaço do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, para a abertura da primeira de muitas exposições que a instituição pretende realizar nos próximos anos. Em 2019, o grande fotojornalista doou todo o seu acervo para o IMS que ficará responsável por cuidar, manter e preservar as imagens de uma vida.
A exposição que se encontra no Instituto até 30 de Julho ganhou o nome de “Evandro Teixeira - Chile, 1973”, com curadoria de Sérgio Burgi e assistência curatorial de Alessandra Coutinho Campos, em memória aos cinquenta anos do fatídico Setembro daquele ano onde Salvador Allende fora assassinado e Augusto Pinochet tomou o poder com mãos de ferro e sangue. Além disso é possível vermos as mais icônicas fotografias de Teixeira durante o período de maior repressão da Ditadura Militar no Brasil, exemplares da primeira página do Jornal do Brasil durante aqueles dias e uma expografia que culmina no momento de maior expressão de Evandro Teixeira em sua carreira como fotojornalista: a morte de Pablo Neruda.
“No Chile foi pauleira” “Esses caras tudo loucos” “Sinergia macabra” “Você tem que ter sorte. A sorte estava do meu lado”. Foram essas as palavras que Evandro Teixeira utilizou para descrever o que foram aqueles dias no Chile. Um dia depois do golpe, em 12 de Setembro de 1973, o JB o enviara para aquele país, ao lado do jornalista Paulo César de Araújo. Foram nove dias retidos na fronteira com a Argentina ao lado de outros correspondentes internacionais, impedidos de entrar no país pelos militares chilenos. Chega o dia 21 daquele mês e enfim puderam entrar e registrar o que havia ocorrido, no que foram sete dias, uma semana, que mudaram sua vida. “Soldados que não sabiam porque estavam ali combatendo, uma certa população que estava ali achando que estava tudo bem. Situação dramática. Tiros no Estádio Nacional. Coisa vergonhosa.”
O primeiro lugar destinado para visitas pelos militares chilenos para a imprensa internacional era o Estádio Nacional, no dia 22/09. “A gente sabia que coisas terríveis tavam acontecendo, nos porões do estádio. Coronel disse que (os prisioneiros políticos) estavam sendo bem tratados. Eu queria dizer seu safado, é mentira.” diz. “Corri na frente, lugar que não mostraram. De repente veio a grade. No paredão.” Ao percorrer alguns espaços do estádio sem autorização tirou fotos que viriam a aparecer na primeira página do Jornal do Brasil: dezenas e mais dezenas de presos agarrando as grades de uma prisão no porão do estádio.
V
09:45 da noite. Pablo Neruda está morto. “Eu fiz a sequência de fotos, do corpo na maca. Eu clicando, só eu, ali, não tinha mais ninguém. Eu não acreditava que tava ali. Pinochet malandro, safado. Mandou o exército não atacar, mas ficar atento ao lado e convocou (na mesma hora) a imprensa para uma coletiva. Eu digo, PINOCHET QUE SE DANE. Aí quando a gente entra no cemitério, aqueles poemas declamados, cantando, ‘Neruda Vive’, aí começa as lagrimas. Começaram a derramar. Foi emocionante."
Todos queriam saber: onde está Pablo Neruda? Não só um dos grandes nomes da literatura mundial, era um político de esquerda e próximo a Allende. Seu silêncio atormentava muitos naqueles dias. “Temos que buscar o Neruda.”, disse Teixeira naqueles dias. Foi passada a informação de que estaria na Clínica Santa Maria. No dia 23, foi até o local e a informação era de que não poderiam passar maiores informações. Durante a noite ligou para a Clínica para saber de algo. Ali ouvira o que de pior poderia se ouvir.
No dia seguinte. A clínica está cercada. Evandro Teixeira acha uma porta lateral, entra. Click. Primeira foto. Ali estava a esposa de Neruda, Matilde Urrutia, sentada, resignada. “Fique conosco”, ela disse. Teixeira havia dito que era amigo de Jorge Amado e o sotaque baiano o ajudara. Dali ganhou intimidade e confiança para permanecer ao lado da viúva e dos amigos do poeta. Foram para a casa de Neruda com o corpo, que ficava num bosque alto com um riacho que era preciso atravessar. Dias antes os militares quebraram a represa após destruir toda a casa de Neruda por dentro. Foi preciso carregar o caixão nas mãos, construir uma ponte improvisada para passar.
No dia 25 de Setembro, milhares de pessoas compareceram ao enterro de Pablo Neruda. Num ato também contra aquele estado de exceção que matava, torturava e sufocava um país. Tudo registrado com afeto e emoção por Evandro Teixeira, que não deixou a câmera cair.
Diante das Fotos de Evandro Teixeira
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 16 de abril de 1983
Poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) para Evandro Teixeira, publicado no livro Fotojornalismo (1982), lançado em 1983, e posteriormente no livro Amar se aprende amando (1985).
A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.
É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das figuras.
Fotografia – é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo,
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.
Das luas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?
Marcas de enchente e do despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York
a moça em flor no Jóquei Clube,
Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois são fotos.
Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança a brotar das cinzas.
Alguns créditos de fontes adicionais: Insitituto Moreira Salles e o O Globo