Claudio Cretti. Onde Está a Arte. Número 17.
Os objetos e as esculturas ganham forma e volume, tomados da verve dos significados que suas obras adquirem ao se inserirem sobre os espaços.
Ao adentrar o imponente edifício, de forte influência neoclássica, inaugurado em dezembro de 1905, a sensação é a da mais completa reverência a um tempo. O que antes fora a Escola de Farmácia de São Paulo, veio a ser restaurado e adaptado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 1987, para abrigar a Oficina Cultural Oswald de Andrade. Nesse espaço construído com alvenaria de tijolos, piso de assoalho no pavimento superior e cobertura em telha francesa fora proposto um uso em que converge a ocupação do espaço para expressões artísticas no coração do bairro do Bom Retiro.
Um salto no tempo nos leva para o dia 25 de fevereiro de 2016, onde seria possível testemunhar a junção de tensões que levaria um artista a realizar um registro de suas inquietações, ao transitar por entre sua vivência com as performances e com a ocupação de um cenário. Um espetáculo que pulsa no que a materialidade é capaz de transmitir nos movimentos dos corpos.
Claudio Cretti ocupou o edifício centenário naquele ano e realizou uma exposição disruptora num ambiente preservado em sua memória. A obra Onde Barro a Casa o Corpo se torna emblemática se observarmos os registros que dela ecoam no presente. Criada com quatro toneladas de argila, a obra estática que permaneceu durante o periodo de exposição, antes veio a ser, na abertura, uma performance. Sob a imensa massa de barro, quatro artistas manipularam o material e construíram topografias. Sob as cavidades do corpo, das virilhas aos pés e mãos dos que modelavam a argila, formas imersas nela surgiam na tensão do encontro, carregadas de provocação e sensualidade.
A obra que permaneceu, como vestígios da presença humana incrustadas na massa argilosa, numa memória da fricção, ali naquele espaço reverberou sobretudo nas palavras da curadora Paula Borghi que viera a escrever em um texto para a exposição: “O trabalho carrega em si um gesto racional, porém potencializado por uma abrupta sensualidade. Quando concluído o ato, os performers se retiram e resta ao espectador desfrutar deste deleite. Os que não assistiram a performance, seguem as marcas deixadas na argila. Já aqueles que o testemunharam ao vivo, guardam a umidade entre as pernas.”
Nos outros dois espaços ocupados pelo artista na Oswald de Andrade nessa exposição, foram exibidas ao público inúmeras peças da série Trago, uma variedade de materiais, tais como borracha, madeira, cachimbos e piteiras em obras escultóricas e no espaço externo do edíficio a obra Paragem. Em grande dimensão uma escultura de madeira reproduzia a estrutura de uma casa simples, aliada a uma outra que possibilitava a forma de um banco feito para se sentar.
A obra Onde Barro a Casa o Corpo nos serve de fio condutor por dois momentos na trajetória de um dos mais instigantes artistas da arte contemporânea brasileira. São percursos que se desdobram no passado e outros que se desdobram daquela exposição em diante.
O teatro e a performance
Numa quinta-feira fria em São Paulo, Claudio Cretti me recebe para uma conversa regada a um café e um bolo de banana. Ambos concordamos que não há nada melhor que um café puro, sem açúcar. Suas esculturas se encontram em um lugar de fascínio a partir do olhar detido nas utilizações das pedras e no tratamento dado a elas. Tadeu Chiarelli, um dos grandes curadores de arte brasileira, que acompanha o trabalho de Cretti desde o final dos anos 90, arremata no texto de 2003 que as esculturas do artista “parece respeitar a pedra em sua integridade de elemento que ora reflete, ora absorve a luz. Modalidade com precaríssima tradição no país, a escultura de pedra contou com raros praticantes na arte brasileira do século XX.”
O texto então traz uma menção ao escultor Sérgio Camargo como o único antes, logo no pós-guerra, que conseguiu cultivá-la plenamente, trazendo para o ambiente da arte brasileira (de forma um pouco tardia, talvez?) uma aplicada correção formal, síntese possível entre a experiência brancusiana e aquela construtiva (local e internacional).”
O contato com a arte para Claudio surge ainda quando criança. “Cismei que ia ser artista, eu não sabia exatamente o que seria como artista, desenhava muito em cadernos”, diz. A linhagem da família por parte de seu pai fora repleta de mentes criativas, que buscavam formas de exprimir diferentes expressões artísticas. Um tio avô fora pintor acadêmico, outro tio avô tocava violino e orquestra, uma avó se tornara costureira de roupas de alta costura. “Era uma costureira finíssima, ela aprendeu alfaiataria, porque o pai era alfaiate.” Da parte da mãe haviam muitos músicos.
Nascido em Belém, Pará, em 1964, veio ainda muito jovem para São Paulo, de onde era seu pai. A arte estava no seu olhar curioso, desbravador em meio as muitas expressões, mas sobretudo no desenho. Em 1981 estudou no Instituto de Arte e Decoração (Iade), a partir de um conselho de uma prima. “Muita gente estudou lá, Lenora de Barros, Sergio Romagnolo. Tive aulas com Guto Lacaz, Cassio Michalany. Era uma escola técnica de arte. Única experiencia do tipo no Brasil, acho.”
“Desde cedo eu tinha essa coisa de querer fazer arte.”
Claudio Cretti
Após o tempo em que estudou no Iade surgiu a oportunidade de fazer teatro. Um amigo de uma amiga que era do teatro perguntou se ele tinha vontade de atuar. De pronto aceitou o desafio. Em 1985, trabalhou no Grupo de Arte Ponkã, inovador grupo de teatro dos anos 80 em São Paulo. A influência do grupo performático de vanguarda foi, naquele momento, essencial para dar conta da inquietude que estava dentro de si. “Aos poucos fui me desinteressando e entrei na pesquisa com escultura e desenho, em 1989/90. Tinha uns 25 anos.”
Em 1987, trabalhou como monitor no educativo da 19ª Bienal Internacional de São Paulo. Durante o período de um ano, sob a batuta de Tadeu Chiarelli, Chakè Ekizian e entre outros nomes, participa de um curso de formação para artistas oferecido pela Fundação Bienal. A efervescência daqueles anos o motivava a criar, e na inquietação muitas ideias surgiam.
Sob a curadoria geral de Sheila Leirner, uma exposição em particular permanece na memória de Claudio Cretti: a de Marcel Duchamp na 19ª Bienal. Foi apresentado naquela ocasião os famosos trabalhos do mestre dadaísta de ready-made. “Eu fiquei fascinado pela coisa toda do Duchamp.”
Uma ideia então surge: realizar uma performance a partir daquela exposição do grande nome do dadaísmo em um evento paralelo na 19ª Bienal. Com o bem humorado título Aceita um chope, Duchamp? consegue a permissão para realizar a performance dos organizadores.
“Fiz um trabalho, uma performance que foi apresentada (em um evento paralelo) na Bienal. Consegui que fosse liberada para ser apresentada. Teve sete apresentações, chamava Aceita um chope, Duchamp?, que era uma encenação a partir da história do trabalho da obra O Grande Vidro (conhecida também como A noiva despida pelos seus celibatários, de 1915-1923, que não estivera naquela Bienal mas Claudio descbrira nas aulas com Tadeu Chiarelli), celibatários, havia todo um elenco, havia o celibatários, a noiva, foi uma coisa grande. Consegui uma produtora que topou bancar o projeto, figurinos, foi um negócio maluco.”
A performance de maneira intima se desdobra tanto em seus trabalhos como cenógrafo, como nos trabalhos na Bienal de 1987 e na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em 2016. A performance do corpo e dos movimentos passam para as esculturas em uma incorporação que se insere nos espaços à procura de novos significados.
“O todo se dá na união pelo encontro de coisas muito distintas, improváveis de conviverem juntas, eu as faço conviverem, elas se articulam e criam um corpo.”
O espaço do ateliê de Claudio Cretti é um mundo em si próprio. Diferentes objetos se amontoam na espera de ganhar sentidos, em junções particulares. Constantin Brâncuși convive bem ao lado de Marcel Duchamp e Waltercio Caldas em colagens na parede. Seu laboratório de experimentações abre espaço para novas esculturas e objetos, no contato com o chão e com as paredes. Madeira, cachimbos, molde de sapatos, batuta de regência, semente de manga e piteiras são apenas alguns dos objetos e achados que se encontram nos seus trabalhos. Muitos desses itens podem surgir de suas andanças por feiras de antiguidade. Um dos trabalhos, ainda em processo, apresenta uma trança de quatro que Claudio busca contornos para terminar. A sua busca está nos modos como as diferentes partes se encontram entre si, como ele revela no título deste capítulo.
Observar sua trajetória com materiais diversos ecoa, de certa maneira, ao dadaísmo que tanto o fascina com traços que já vinham de sua poética em formação. No primeiro Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, em 1989, quando expôs relevos feitos “com lascas de outdoors aglutinadas com tintas e cola”, como relembra Rodrigo Naves, crítico de arte e atento observador da trajetória do artista, havia uma inquietação que o levaria a trabalhar com esculturas. “É como se, operando no tridimensional, Cretti remontasse à proteção que a forma possui no desenho e na pintura. O artista, renegando na prática a escultura como instauradora/motivadora de transformações do espaço real, viabiliza um lugar protegido para que suas formas tridimensionais possam existir.”, afirma Tadeu Chiarelli em texto publicado no catálogo da exposição realizada na Galeria Marilia Razuk em 2003.
Surgem os desenhos de bastão de óleo sobre papel e as esculturas em pedra e madeira. “Peças que se acomodam sobre outras, esse contato com a natureza, a relação entre cultura e natureza, mesmo quando uso a pedra tem o uso do pedaço tirado e depois num estado mais bruto como você poderia encontrar na natureza e as peças desenhadas e polidas, algo que pela diferença acontece o encontro.”, diz Cláudio. “E tem essa coisa dos encaixes, sempre teve isso, desde aqueles primeiros, coisa de um todo que é formado por partes que se encaixam.”
“A gente se formou olhando para fora, quanto mais você olha para dentro de si, mais pra fora você vai, acho que meu trabalho tem mais alcance e mais particularidade ao mesmo tempo, porque lembra uma série de coisas que não se sabe exatamente o que é mas que te lembra coisas que tão ali.”
Claudio Cretti
Os seus trabalhos com tubos de borracha então surgem como definidores de uma consolidação de seu talento, suas icônicas obras plásticas. “Eu acho que com esses trabalhos com borracha fica mais claro pra mim um negócio um pouco meu, o trabalho que faço hoje, óbvio que pode lembrar um monte de coisa, um monte de gente, mas tem ali um negócio muito particular.” Rodrigo Naves em seu texto crítico para a recente exposição de Claudio Cretti na Galeria Marilia Razuk, deste ano, confirma: “Sua primeira exposição foi feita aos 25 anos. Tanto o artista quanto eu, pensamos que seus trabalhos mais originais começam aos 47 anos, com a apresentação dos cachimbos — um nome genérico — expostos em 2015 na exposição “Trago”, com curadoria de Tiago Mesquita, na Galeria Marília Razuk. Os trabalhos simulam um sistema de vasos comunicantes que une diferentes categorias de cachimbo através de tubos de borracha.”
Em 2006, em uma vasta exposição de suas obras na Estação Pinacoteca, os objetos e esculturas pareciam se expandir mais e mais. Gramas, pedras e luzes. Seu interesse no começo daquela década era a de explorar uma organicidade nas formas do mármore, barro e pedra. Havia tacos suspensos e bolas pintadas em cores. “Essa exposição na Estação tem um cotejo entre situações mais orgânicas e situações mais regulares, geometrizadas e os desenhos.”
Ao final, é possível observar que há nos materiais a mesma possibilidade de determinar os traçados do desenho. Os riscos sobre o papel e as junções das partes guardadas em seu ateliê abrem espaços para o interesse do artista em ser um disruptor, alguém contrário ao que é proposto, um pouco como o jovem Claudio que demonstrara sua inquietação durante a 19ª Bienal. Então pergunto, que artistas o impressionou, além de Duchamp, claro, naquele evento:
“Tinham tantos artistas, também tinha uma exposição chamada Imaginários Singulares com curadoria da Sônia Salzstein e Ivo Mesquita. Eu conheci o Tunga, um artista que me marcou muito poder conhecer, assim como Waltercio Caldas e Anselm Kiefer. Coisas muito diferentes que formam um pouco do meu imaginário. Coisas que daí aparecem às vezes no meu trabalho e você não sabe o porquê, mas acho que todo muito tem isso dentro do processo de criação. Coisas que estão com você, que fizeram sentido algum dia e hoje talvez nem faça mais sentido, mas aquilo aparece de algum jeito e acho você vai buscando uma originalidade, uma coisa assim que seja tua.”