Benjamin Seroussi. Onde Está a Arte. Número 23.
Tornar a cultura um bem acessível. Promover encontros. À frente da Casa do Povo, no Bom Retiro, e de diversos outros projetos, aprendemos muito ao ouvir seus pensamentos sobre arte e cultura.

“Cultura é a regra, a arte a exceção”. Jean-Luc Godard profere essa frase no curta metragem de dois minutos chamado “Je Vous Salue, Sarajevo”, de 1993. Vemos durante todo o filme uma única fotografia congelada pelo tempo tirada em 1992 pelo fotógrafo Ron Haviv. Dois soldados fardados com uma toca preta aparecem na imagem. O território da antiga Iugoslávia havia sido fragmentado entre sérvios, croatas e bósnios em uma guerra vil e cruel pela ocupação daquele lugar. Nela temos o registro da batalha em Saravejo, capital da Bósnia. Os dois soldados parecem observar algo. Estão apreensivos. Uma trilha sonora permeia esse momento. A frase com que inicio esse texto surge no dado momento em que Godard nos revela um terceiro soldado. Em uma de suas mãos ele segura um cigarro. “Pois há uma regra e uma exceção.” Fixado nessa imagem do cigarro, Godard profere: “Cultura é a regra…” Então se revela a outra mão do soldado, com uma arma de fogo apontada para baixo. “… a arte a exceção.”
O jogo de Godard aqui nessa imagem continua ao lançar novamente a nossa atenção para o cigarro nas mãos do terceiro soldado. “Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, televisão, turismo, guerra.” Voltamos para o recorte da arma nas mãos e a voz de Godard: “Ninguém fala a exceção”. A câmera que passeia pela foto fixada na arma então se desloca para baixo onde se revela a quem ela está apontada: civis prostrados, rendidos, com as mãos em suas cabeças. Sua narração em off prossegue ao dar formas para o que se refere com a palavra ‘exceção’: “Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoievski. Ela é composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida e se torna arte de viver: Srebrenica, Mostrar, Sarajevo.”
O filme então tem seu desfecho. Godard parece olhar para aquela fotografia e perceber que em uma guerra, sobretudo, a cultura imposta determina como as coisas são, e a arte segue a desafiar o modo como em que tudo se coloca. “A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.”
Ouvi Benjamin Seroussi proferir a frase “Cultura é a regra, a arte a exceção” em uma aula que ministrou no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2019, no qual estive presente. Ao citar essa frase de Godard, Benjamin abordava o núcleo das suas ações em instituições onde trabalhou e em que somou esforços junto a movimentos coletivos, especialmente na Casa do Povo, uma associação cultural judaica no bairro paulistano do Bom Retiro. Ali, ele pôde observar como a cultura permeia comportamentos e ações, enquanto a arte, em todos os contextos, surge com o propósito de tensionar esses modos de vida. Enquanto a cultura organiza a sociedade e a aproxima do que se acredita ideal, a arte desorganiza e promove novas práticas culturais e modos de convivência.
“O que significa uma academia de boxe em um espaço de arte e, ao mesmo tempo, o que significa um espaço de arte em uma academia de boxe? Isso cria uma dinâmica interessante. E, no meio de tudo isso, acho que é bom para o boxe, bom para a arte, bom para a psicanálise, bom para a dança, bom para a comida”, reflete Seroussi.
Antes de entrarmos no que ele se refere a inserir disputas de boxe nos mesmos espaços de exposições de arte é necessário voltar alguns anos no tempo e acompanhar sua trajetória como curador e gestor cultural. Seu olhar para a prática cultural orienta-se por um engajamento com a comunidade, enxergando a cultura como um meio de expandir vivências e promover comunhão por meio da construção do saber e da memória.
Sua formação é em Economia pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Três anos depois obtém o mestrado em Sociologia na École Normale Supérieure. Outros dois anos, um outro mestrado em Gestão Cultural e de Mídia na Sciences Po. Sua experiência acadêmica na França não define por completo sua imagem, mas se insere em seus conhecimentos teóricos. O que o define, sim, se sedimenta nas trocas e convivências entre diversas pessoas e em diferentes lugares. Com o cineasta Chris Marker (1921-2012), produz e edita uma publicação, lançada em 2009. Se interessa pelas dinâmicas de filmes. "Estive em um set e, depois, tentava propor uma análise de cena usando as ferramentas que construí por meio da observação. Mostrava como pensar a luz a partir do som, pois a luz gera barulho e impacta a maneira como o som é gravado, já que os refletores emitem ruído. Procurávamos revelar todos esses detalhes e explicar o motivo de a cena ser construída dessa forma."
Entre 2010 e 2012, edita uma publicação ao lado dos escritores Michel Laub e Joca Reiners Terron. Há muitas outras trocas que nos leva para uma aproximação com memórias coletivas.
“Há algo que vem de outra formação minha, da etnografia, que é a ideia de imanência das coisas: elas, às vezes, existem porque estão no mundo articuladas com outras coisas. A ideia é que, quando um trabalho consegue produzir um mundo próprio dentro das possibilidades de sua existência, ela passa a existir em relação também com outras esferas da vida.”, diz Seroussi.
O mundo dentro de um objeto, de uma fala, de uma dança. Imaginar a cultura interligada entre corpos e criações materiais de pessoas que transitaram entre nós em um outro tempo e que se encontram diante de nós em uma caminhada pela cidade, por um museu, por um parque. São mundos que gravitam em meio a nós a cada segundo.
Após sua última formação de mestrado, em 2006, consegue um estágio em uma produtora de cinema e ajuda a organizar um Festival de Cinema Brasileiro em Paris, além de promover filmes franceses no mercado brasileiro. Se torna adido cultural do Ministério de Assuntos Estrangeiro da França e entre 2008 e 2009, no que foi escolhido como o Ano da França no Brasil, se torna produtor executivo do Panorama do Cinema Francês, promovido pela Unifrance, uma associação que apoia os profissionais do cinema. A história com o Brasil começa a dar seus primeiros passos.
Quem vem a conhecer Benjamin Seroussi encontra diante de si uma pessoa amabilíssima, cheia de um encanto que foge do velho estereótipo de francês cheio de passos e medidas. Não fosse pelo seu leve sotaque, passaria-se por um brasileiro filho dos batuques e dos giros das mães de Santa Tereza ou da Casa Verde. Há um entusiasmo em compartilhar e receber afetos, histórias e trocas.
Sua experiência como diretor de programação do Centro da Cultura Judaica (CCJ-SP), entre 2009 e 2012, foi uma das suas primeiras atuações no Brasil. Além de editar livros, organizou mostras de filmes que trazia produções audiovisuais de Israel ao país. Sua preocupação sempre foi a de divulgar a variedade de vivências e culturas que se entrelaçam na identidade judaica.
O contato com as produções artísticas vem antes de se imaginar em dedicar seu tempo em construir aproximações através dela. “A arte é um arco que abrange outras esferas da vida, e, ao dizer isso, talvez reconheçamos que não dá para separá-las. Me surpreendo mais com a separação entre elas do que com a função da arte em si. Encaro como um dispositivo complexo quando a arte é isolada das demais esferas da vida, porque, de outra forma, a arte é uma experiência que atravessa e se entrelaça com outras vivências, ajudando a compor nosso entendimento do mundo. Para mim, essa concepção vem de lugares muito distintos.”
Há expressões de arte em todos os espaços em que Benjamin imaginou construções e reconstruções. Presente na cozinha, na sala, no espaço de convivência, no jardim da Casa do Povo, por exemplo. "Sempre há algo que considero uma experiência quase seminal, algo que me permite compreender a arte naquele contexto. Também há uma característica própria da produção artística: cada vez mais os artistas com quem trabalho buscam articular seus pensamentos e práticas com áreas que não são necessariamente artísticas."
Ele cita Fernando García-Dory que criou um jardim e Graziela Kunsch que produziu uma creche coletiva. "Acho que muitos artistas conseguem identificar, em práticas que não são artísticas, algo equivalente às suas próprias práticas, seja uma forma de pensar ou um modo de fazer. Isso acaba trazendo a arte para dentro de outras práticas, sem isolá-la, e são esses artistas que também me conduzem nessa direção."
Esses exemplos de artistas que se articulam em trabalhos não necessariamente ligados ao cânone da arte podem oferecer respostas para o que Benjamin quis dizer com ‘academia de boxe em um espaço de arte’. A força das ações que movimentam a Casa do Povo sob sua direção reside na multidisciplinaridade das propostas, que buscam expandir diferentes expressões culturais em uma comunidade — neste caso, a do bairro conhecido por mesclar diversas práticas culturais de diferentes nacionalidades.
A academia de boxe foi uma dessas ações. Chamado de Boxe Autônomo, é uma ação coletiva que atua desde 2015 e que encontra na Casa do Povo um ambiente para disseminar as práticas do esporte para todos os que se dispuserem a comparecer e contribuir com os treinos de boxe. É uma academia livre voltada para o bairro do Bom Retiro. Nesse mesmo edifício é possível se deparar com obras de arte contemporânea como a de Renata Lucas: uma bandeira do Brasil que atravessa andares do edifício. "Sempre gosto de pensar qual é o mundo que uma obra precisa. Por exemplo, algumas obras são bem objetuais, como o trabalho da Renata Lucas na Casa do Povo, aquela bandeira que atravessa os três andares. Ela faz sentido ali, naquele espaço. Um site-specific, uma convivência com outras práticas em discussão, muito presente. Se estivesse em um cubo branco, talvez perdesse sua força. Então, as obras também demandam um certo contexto que precisamos criar."
O pensamento sobre arte para Benjamin Seroussi reflete-se na forma como a Casa do Povo compartilha a experiência artística com todos que a adentram: práticas de uma produção que podem abrir novas possibilidade de criação e definição artística. A convivência em torno de uma atividade — seja em treinos de ioga, seja em uma cozinha compartilhada — pode gerar signos que resultam em exemplos concretos de imagens, performances e outras expressões que mobilizam uma contemplação coletiva.
"Acho que a Casa do Povo emana esse ímpeto de diversas formas, quase como uma homenagem à própria história do edifício. É exatamente o que estava dizendo, é um exemplo de trazer essas fricções, esses encontros. Mas, no caso, há duas coisas que me interessam particularmente ali. A primeira é que a Casa foi criada não por artistas engajados, mas por políticos que usaram a cultura como ferramenta para continuar fazendo política durante o Estado Novo, a Ditadura. Isso já marca um pouco a origem da Casa do Povo, indicando que as práticas artísticas ali são inseparáveis desse movimento original, de pensar a Casa como uma continuidade de uma fase política.", compartilha Seroussi.
Sobre uma casa para todos.
Quando Benjamin Seroussi chega na Casa do Povo, no ano de 2010, percebe em meio as rachaduras no teto e aos diversos problemas estruturais uma oportunidade para um jovem curador. Em nossa conversa no lado externo da Galeria Vermelho, no bairro do Higienópolis em São Paulo, admite que com o passar dos anos percebe que foi uma oportunidade para o prédio em si. "A Casa do Povo é um prédio com uma história enorme. E realmente faltava alguém, ou um grupo de pessoas, para fazer o espaço funcionar em um momento que demandava justamente isso. Acho que não é por acaso que a Casa do Povo ressurge praticamente ao mesmo tempo que as manifestações de 2013."
E complementa: "Acho que foi um momento em que a Casa do Povo cresceu muito, porque o contexto exigia essa presença. Para mim, isso foi um grande aprendizado, entender que nossa atuação acontece dentro de condições muito específicas. Nesse sentido, talvez eu tenha sido um pouco a pessoa certa na hora certa, mas o que realmente importava era o momento, mais do que eu. Acho que isso ensina sobre humildade; é bonito perceber como atuamos dentro desse tempo e dessas estruturas, e entender melhor o nosso papel nelas."
A Casa do Povo, como instituição, é erguida em 1946 pela comunidade judaica de São Paulo, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O empurrãozinho para que fosse criado um lugar que compartilhasse e preservasse a cultura secular dos judeus foi dado em Paris no ano de 1937 em um congresso realizado pela Yidisher Kultur Farband (uma organização que buscou desenvolver a cultura Ídiche). A missão era a de construir um monumento vivo que consolidasse a memória das vítimas do Holocausto onde quer que houvesse comunidades judaicas. Com fortes ideias progressistas e antifascistas, buscava divulgar para o mundo a cultura que outrora esteve ameaçada de existir. Jornais, escolas e teatros foram abertos no Brasil. Em São Paulo, surge o grupo Yugent Club, o jornal Nossa Voz, uma biblioteca, um grupo de teatro, o Coral Sheiffer e a escola Scholem Aleichem.¹
O prédio inaugurado em 1953, a partir do projeto dos arquitetos Mange, Martins e Engels, se notabilizou desde o começo por suas transversalidades em promover ações e atividades aberta a todos, sendo judeus ou não. A escola Scholem Aleichem é um bom exemplo disso. Tinha por objetivo formar alunos através de uma ampla grade curricular. História e cultura estavam na base do ensino dado.
Durante a Ditadura Militar no país, a Casa foi alvo de repressão, sobretudo pelo seu viés de esquerda. Funcionários e colaboradores da escola foram presos. A instituição sofreu de espionagem e pressão social. ¹ O Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib), construído e projetado em 1960 pelo arquiteto Jorge Wilheim no subsolo do edifício, foi um dos poucos espaços que desafiavam a ordem ditatorial dos militares. Shows, peças e artistas subiram no palco do Taib, dentre esses Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Memoráveis espetáculos como Murro em Ponta de Faca, de 1978, do dramaturgo Augusto Boal e Safári, de 1976, da dupla Antônio Pedro e Chico Buarque, passaram pelo teatro.

Além da escola, teatro e atividades culturais, a Casa do Povo abrigou a sede do jornal Nossa Voz. Lançado no ano de 1947, era escrito em ídiche e português. As notícias eram sobre o que ocorria no bairro, além de trazer artigos de professores da escola Scholem Aleichem, com viés de esquerda. Foi fechado no primeiro ano da Ditadura Militar, em 1964. O seu editor chefe na época, Hersch Schechter, dentre outros, foram forçados a se exilar.
No momento em que me encontro com Benjamin Seroussi, a Casa do Povo encerrava um ciclo de dez anos desde que a instituição ressurgiu em uma junção de aprendizados trazidos por diversas vozes, mãos e corações. Dos tumultos de 2013, Benjamin se recorda que o contexto pedia por um espaço de encontros que promovessem um contraponto aos retrocessos vividos pelo país, além da reação reacionária que dava seus primeiros passos. "Acho que por isso funcionou: não foi um esforço solitário, mas algo coletivo, porque muitas pessoas se identificaram com esse espaço, com sua história e com as possibilidades que a Casa oferece. Ela foi aglutinando pessoas e coletivos, e eu sou uma delas. Isso é muito potente. Além disso, havia algo que eu queria provar — que era possível criar um espaço autônomo no Brasil, com uma autonomia real, uma estrutura econômica própria e uma distribuição de forças bem pensada dentro da instituição. Queria mostrar que é possível pensar uma outra forma de instituição e desfazer essa ideia de que todas as instituições culturais são iguais."
Em meio a nossa conversa, provoco Benjamin com uma questão: quais foram os grandes aprendizados que teve nesses anos à frente da Casa do Povo e quais seriam os desafios que percebe no porvir.
Responde que navegar nas condições adversas de um país foi um grande aprendizado. "Acho que se o Brasil está na pior, a Casa do Povo ganha ainda mais relevância. Porque se torna mais urgente, mais necessário." Ao pensar no que torna uma instituição relevante, sobretudo em um país tão diverso, Benjamin traz uma reflexão sobre o que faz algumas instituições se tornarem engessadas com o passar do tempo, e outras, ao contrário, tomarem a postura de instaurar noções abrangentes e criativas de cultura. “Gosto de pensar sobre o que a gente pode chamar de instituição. Podemos chamar um quilombo, uma aldeia de instituição. É interessante abrir um pouco esse conceito. Ainda mais quando há discussões sobre se é possível tornar o museu mais ligado a causas indígenas. Tem um vai-e-vem conceitual interessante. E a Casa mostra que existem experiências singulares, vinculadas às artes, que podem existir aqui no Brasil mesmo em um contexto adverso.”
Já o principal desafio que enfrenta a Casa do Povo nesses novos tempos, para Benjamin está na ordem do continuar a se pensar no coletivo nos anos porvir. É só entrar no espaço ali na Rua Três Rios, 352 que se percebe a tônica do fazer algo por muitas mãos. Dança, boxe, cozinha, cursos, sessões de psicanálise, leituras, arte, ecologia. Nutrir e ser nutrido desse convívio é o que anima Benjamin em se manter como um colaborador e responsável ativo pela Casa ser um local sempre cheio de desejos e ideias. "A Casa ocupa um espaço muito especial. Alguns me reconhecem, outros me reconhecem menos nas posições que tomamos coletivamente, mas o fato de tomarmos as decisões de forma coletiva ajuda muito a estar presente no mundo, a pensar com mais clareza e a propor pequenas mudanças reais em nossa escala e nas nossas ações. Isso me leva ao desafio. O desafio é esse, que me preocupa muito hoje: uma espécie de normalização da Casa do Povo, a domesticação da instituição e a redução de sua capacidade de instaurar mundos. Ela corre o risco de se tornar um espaço mais limitado pelos seus processos, pelos seus orçamentos, pela necessidade de captação e pelo crescimento. Acho que crescer é sempre uma armadilha; defendo muito a ideia de proliferar, de que é melhor ter várias instituições que sejam pares da Casa do Povo."
No que se refere como instituições pares a Casa do Povo cita os exemplos da Casa de Cultura Tainã, uma entidade cultural e social de populações quilombolas na cidade de Campinas e da Ocupação 9 de Julho, formada por integrantes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). "Acredito que esses lugares estão nesse lugar de ativar uma história e uma ancestralidade, ao mesmo tempo em que atuam no campo da arte e da cultura."
Ganhar uma enorme relevância na cidade, se manter ativo dentro da comunidade do Bom Retiro e preservar a mesma essência que norteia a Casa. Esse é o maior desejo de Benjamin. "Sempre me pergunto o que significa não crescer e o que é decrescer. Para garantir flexibilidade e adaptar-se aos projetos, é necessário falar de forma mais suave e ouvir melhor o que o território e os artistas têm a dizer. Crescer não significa, necessariamente, que seja a única forma de evolução. É possível decrescer e, ao mesmo tempo, consolidar, obter financiamentos mais organizados e oferecer melhores condições de remuneração para as pessoas envolvidas. No entanto, também há a questão de manter uma certa fragilidade sem cair na precariedade, de ter uma porosidade sem se diluir. Ainda não encontrei uma resposta para isso, por isso, continua sendo um desafio."
Como falar de coisas que não existem.
O ano de 2013 foi intenso para Benjamin Seroussi. Além de liderar o processo de revitalização da Casa do Povo — que, por décadas, foi perdendo sua relevância com o encerramento do teatro no subsolo e da escola que ali funcionava —, ele integrou a 31ª Bienal de São Paulo como curador associado. A grande mostra, intitulada Como falar de coisas que não existem, foi conduzida junto dos curadores Charles Esche, Luiza Proença, Galit Eilat, Nuria Enguita Mayo, Pablo Lafuente e Oren Sagiv. Durante essa Bienal, foram exibidos 81 projetos abordando diversos tipos de conflitos, entre eles os de intolerância religiosa e violência policial.
"Quando aconteceu a Bienal, eu já estava no Brasil há uns sete ou oito anos. Eu já tinha uma trajetória curatorial aqui e estava começando na Casa do Povo. Para mim, foi muito gratificante. Fui Curador Associado em um grupo de curadores. Foi muito interessante porque eu trabalhava em uma escala muito grande, comissionando obras e podendo viajar pelo Brasil. Foi importante, pois eu não conhecia tão bem o Brasil e consegui visitar vários lugares. Isso foi bom, pois também criei várias relações com artistas de fora do país. Fiz viagens de pesquisa à Polônia e à França. Tudo isso foi muito interessante porque abriu novas perspectivas para mim. Trabalhar com pessoas mais experientes, como Galit, Charles, Pablo, Núria, Oren, e com Luiza, que era a curadora brasileira, foi enriquecedor."
As suas ações durante a Bienal propunham muitas questões que atravessavam também o seu trabalho na Casa do Povo naquele mesmo período. Sobretudo no que se refere a presença de coletivos, que ganhavam impulso com as manifestações de 2013. O conflito em que o país vivia naquele ano fez com que, em meio a tantas vozes que surgiam, fosse necessário promover e colocar coletivos em contato entre si. "Isso proporcionou uma formulação mais clara, algo que eu já estava procurando. Foi muito massa. Ao mesmo tempo em outros aspectos, foi uma experiência um pouco decepcionante."
Sua percepção de trabalhar em uma das mais importantes Bienais do mundo foi a de que em meio a uma enorme expectativa criada e um certo conhecimento pré-estabelecido sobre a leitura dos trabalhos de arte, algo se perdia no meio do caminho. “As Bienais não são necessariamente bons lugares para exibir arte. É difícil criar um contexto em que as obras possam ser apreciadas plenamente. Isso também é interessante, pois coloca os trabalhos em uma arena pública, política e nacional, mas acredito que há um certo aspecto violento nisso."
Benjamin acredita fortemente que as obras de arte demandam um certo mundo para que elas possam existir. "Cada obra demanda um certo tempo; pode ser acelerado ou mais lento, requerendo um tipo específico de iluminação e a criação de um mundo próprio. As atividades ao redor e a forma de entrada na Bienal, a circulação, essa coisa toda de consumo, fazem dela de fato um lugar não ideal para ver e mostrar arte."
Por outro lado, ter estado em uma Bienal o fez perceber a dimensão do que se é oferecido aos artistas para produzir com bons recursos financeiros, além de uma atenção na produção e na comissão de obras. "Mas depois, as obras são incorporadas a coleções ou ao mercado, mas existe ali um lugar de produção. Nós queríamos muito um espaço para mediação, mas é difícil. Nessa Bienal, houve um escândalo no início com o boicote a Israel e, depois, outro escândalo sobre o aborto. Isso estava ali para provocar o pensamento, mas, por outro lado, sempre que surgia, o debate era um pouco superficial, achatando a conversa. Foi uma relação ambígua, mas muito gratificante, afinal. Quando vou à Bienal de São Paulo agora, é bonito, porque parece que o prédio é um pouco assombrado pelas edições passadas e futuras, e sempre há um evento marcante. Foi uma boa experiência. Aprendi muitas coisas na Bienal: o que desenvolvi lá e trouxe comigo. Muitas dessas coisas eu continuei na Casa do Povo."
O mencionado boicote a Israel na 31ª Bienal se deveu a um protesto de artistas palestinos e libaneses para que a Fundação Bienal não aceitasse um patrocínio do governo israelense. Posteriormente a Fundação voltou atrás e recusou o apoio e financiamento de Israel. Já o escândalo sobre o aborto ocorreu após o coletivo boliviano de arte Mujeres Creando, uma organização feminista autônoma, organizar um espaço para falar sobre aborto.

Dos encontros que a Bienal proporcionou a Benjamin e que ele buscou reviver na Casa do Povo, destacam-se aqueles com os artistas Yael Bartana e Mark Lewis, além do grupo Contrafilé. "Trabalhei com Bartana antes da Bienal e trouxe uma obra dela para a Bienal. Conheci Mark Lewis na Bienal e, juntos, fizemos outro projeto que foi exibido na Casa do Povo. Mantive as relações com o Contrafilé. Conheci Jerá Guarani na Bienal e, depois, concebi outros projetos com ela. Nunca paramos de trabalhar juntos nesses projetos. Sinto que mantive um pouco do espírito dessa Bienal no projeto artístico e no espaço da Casa."
Re(construção)
Entre os muitos projetos liderados por Benjamin com o objetivo de promover relações e trocas por meio da cultura, merece destaque o Vila Itororó Canteiro Aberto, onde ele atuou como curador entre 2015 e 2018. Seu interesse em refletir sobre a função de um centro cultural, especialmente em uma cidade tão vasta quanto desigual, é um aspecto vital de seu trabalho. A Vila Itororó, originalmente um conjunto residencial do início do século XX e tombado em 2002, passou por diversas ações para se manter aberta à comunidade. Durante os três anos em que esteve à frente do espaço, inúmeras atividades foram realizadas.
A nossa conversa chega ao fim, e o francês, com tudo para ser um brasileiro nato — curioso, articulado e cheio de sonhos para a Casa do Povo — fala sobre suas diversas criações e projetos de inserção de uma cultura plural nos muitos espaços e comunidades com os quais se envolveu ao longo dos anos no Brasil: “Abrir algumas pontes e tentar articular isso. Tem sido uma experiência interessante.”