Marcelo Cidade. Onde Está a Arte. Número 19.
O espaço urbano foi e continua sendo o seu ateliê. Seu espaço de pesquisas, por onde as marcas são deixadas para registrar as presenças. Onde a arte surge para infiltrar espaços dentro e fora.
“No ponto de transição, algumas mensagens podem evoluir mais rápido do que o meio.”
Steven Johnson, Interface Cultural, 1997
“A ativação da própria criatividade no cotidiano. Como você usa essa criatividade, não necessariamente você precisa ir a um museu para ver arte.”
Atuar no espaço urbano. Desvendar suas superfícies. Utilizar de suas fraturas, do ambiente público como laboratório de suas descobertas. Parque do Ibirapuera. Ano de 1998. Um dia ameno levava dois jovens a permear invisíveis o concreto com manobras de skate. A liberdade que a cidade permite, ao menos nos parques, de sentir o chão com as quatro rodinhas e poder cair no impulso de levantar a prancha do solo. Marcelo Cidade e um amigo aproveitavam o dia pelo parque e decidiram ver a 24ª Bienal Internacional, no Pavilhão, sem pré-conceitos anteriores, sem quaisquer específicos interesses por trás.
Adentrar espaços fazia parte das investigações que Cidade dera início desde muito jovem quando via na cidade uma sequência de ações que o incitavam a imaginar arte como apropriações de traços, cores e inscrições em todos os lugares. Ao dar início ao curso de artes plásticas da FAAP naquele ano teve a oportunidade de estudar o que gostava: desenhava, desenhava e desenhava. Sabia que era arte o que faria, mas sabia também que seu lugar era o espaço público e seus limites dados pelas estruturas físicas estáticas e em movimento.
De volta ao Pavilhão da Bienal. Ali naquele percurso, Marcelo compreendeu pela primeira vez que o que realmente queria era fazer artes plásticas. O gatilho, o estopim e a epifania veio com a grande soma de exposições que tiveram a curadoria-geral de Paulo Herkenhoff mas em especial de alguns trabalhos presentes ali, como o de Francis Alÿs no segundo andar. “Aí entrei numa sala com um cara empurrando uma barra de gelo, pelo México, por horas. Uma barra gigantesca. Até esse gelo ir apagando, apagando, e no final ficar chutando, é o Francis Alÿs. O título é algo como ‘uma coisa não leva nada’ ai falei isso é maravilhoso, não tô acreditando nisso.” A obra de Alÿs, Paradoxo da Práxis 1 (Às vezes fazer algo leva a nada), de 1997, era uma vídeo-instalação localizada numa sala escura que propunha um fazer artístico ousado, disruptor. Outros artistas também lhe causaram espanto e um profundo choque. “Como um simples ato de mudança, pode transformar algo tão estupido em algo genial, esse limiar entre estupidez e genialidade é uma coisa que sempre amei.” Aí veio ali um artista com uma obra perturbadora no espaço do terceiro andar do Pavilhão: “Bruce Nauman e a obra dos palhaços, os palhaços te olhando respirando forte. É uma Bienal que me pegou.” A obra referida de Nauman é Clown Torture, de 1987.
Conhecida por muitos historiadores da arte brasileira como a Bienal da Antropofagia, presente sobretudo no título da exposição do Núcleo Histórico, a 24ª Bienal, em 1998, foi um turbilhão de possíveis noções do que é arte e do regurgitar de tudo que a América Latina veio a criar em suas práticas artísticas. Para Marcelo foi decisivo em sua trajetória como artista sob diversos aspectos: “A arte tinha uma radicalidade. Arte e vida. A arte tem que servir para criar um choque, uma pancada no estômago. Sempre tentei ir pra criar de um lado uma alteração espacial.”
A citação feita por Marcelo no título deste capítulo é certeira para entendermos os percursos iniciais de sua ideia de criação no espaço mas sobretudo de sua percepção dos espaços por onde a arte pode e deve estar. Espaços públicos, afinal, são os mais democráticos, onde não se exige uma postura mais formal, como em museus e galerias. A interação do artista aqui é condicionada constantemente com as ruas, avenidas e toda uma cidade e nos resultados preliminares de suas descobertas. “Pra entender que o museu é o mundo, como já dizia o (Hélio) Oiticica, isso me interessa muito. Desvendar esses códigos, da própria história da arte, e tentar usar essa eterna curiosidade que a gente tem pra ir tentando criar, construir, desconstruir, ligações.”, diz.
Outro estopim, a grande criação de um dadaísta
A radicalidade. Um período de desconstrução. Filosofia. Existencialismo. O ato de criação do artista. Em conversa aberta com o público na galeria Vermelho no dia 17 de Junho deste ano, na ocasião de encerramento de sua individual no espaço, Marcelo Cidade em um dado momento menciona “O Grande Vidro”, de Marcel Duchamp como a obra que lhe choca, mais que qualquer outra e que se tornara um referencial de uma criação perfeita. “Mexendo peças e criando uma ideia de jogo. Um jogo simbólico, de construção de comunicação. O Grande vidro, eu acho, é a grande obra do século, sem dúvida nenhuma, porque tem essa atemporalidade no fazer. Ele vai construindo uma lógica pra falar, pra pintar e explicar o que é o amor, o que é a ideia de paixão. Ele cria os três pretendentes, a noiva, o moedor de café, tem todo um jogo simbólico, que ele vai construindo numa superfície que é translúcida. É uma coisa absurda. Nem é pintura. Acho que ele usa muitas de outras técnicas, que é de ferro e fica 10 ou 20 anos fazendo aquilo. O trabalho só se realiza quando ele está mudando de ateliê e o cara que carrega quebra o vidro, e a junção do trincar junta todo esse desenho grafico dele, e de toda essa complexidade, então, tem até o acaso, pra mim é um trabalho muito bom porque ele une todas as mídias possíveis.”
O dadaísmo se forma com a disrupção da matéria, evocando o conceito e a criação do artista para além da beleza meramente instalada num suporte, mas ao propor ao interlocutor um diálogo com o absurdo, com a loucura e com tudo que o artista vier a propor a partir de suas intenções. Em Cidade, as matérias e as composições de suas obras são materiais da ordem do efêmero que se materializam em disrupções sobre o espaço do museu e da galeria, ao tratar de signos feitos nos espaços marginalizados da urbis, do território público da cidade de São Paulo sobretudo, mas que feitas uma vez a compreensão pelo sujeito que as encara podem ser lidas como um trabalho sobre o abandono desse corpo urbano por suas populações, emaranhadas pela constante do neoliberalismo e do valor do capital sobre a memória e afeto com o espaço urbano.
A performance. A ação. A escultura. O desenho. O conceito. Marcel Duchamp foi uma das primeiras grandes referências para Marcelo Cidade, “por saber como ele jogava com as várias questões, da autoria, da sexualidade. É um cara muito pra frente, de pensar. Acho que um dos trabalhos mais dadaístas que ele vai e amarra a exposição inteira, como uma grande instalação. Ele já fazia trabalhos que iam muito além da época dele, e a designação do que é a arte, e isso me interessava muito, de tentar perceber qual é esse limite. Até quando a gente pode ir. Até onde o artista pode ir. Na faculdade a gente sempre tava querendo saber o que é arte e o Duchamp foi um dos primeiros que veio me levar a pensar arte além da formalização da arte, pensar arte em relação à sociedade, e aí me fazer perceber, que toda uma vida cotidiana que eu já fazia, que já praticava, poderia fazer pelo próprio entendimento do que é arte. Como o deslocamento, daqui pra cá. Como um movimento simples pode gerar novos significados para um objeto do cotidiano que poderia ser banal. Eu acho que isso é muito básico, sabe, dentro do meu trabalho. Quando eu me vejo, estou sempre fazendo a mesma operação. Tirando daqui passando pra cá. Tirando a designação do espaço que é público para o privado. De dentro pra fora, e vendo os limites disso.”
“Surrealidade e o dadaísmo permeiam minha produção desde o começo e eu tento usar algumas linhas de absurdo. Um interesse meu principalmente nos primeiros trabalhos.”
Marcelo Cidade
Ao vivenciar o espaço urbano como uma extensão de si próprio, os signos que compõem as sequências de movimentos e extensões de São Paulo o fizeram atuar pouco a pouco no espaço institucional com a mesma verve e inquietação que atuava nos espaços públicos. Uma fala sua amarra as linhas de suas experiências com a história da arte. “Dentro da minha pesquisa, de todos esses trabalhos, acho que a ideia do dadaísmo, e da surrealidade vem muito associado ao punk também, movimento punk, e do-it yourself, que é fazer mesmo. Aí relacionar as questões sociais de como isso saí do museu e vai para a rua. Na rua é para onde a realidade permanece surreal pra sempre. Estudando muito sobre surrealismo, tem esse movimento do (André) Bretton que é esse surrealismo europeu, que é pensar o surrealismo para dentro, tem desenhos automáticos, tem aquela pintura que você não sabe bem pra onde vai, mas você vai fazer, uma relação com uma ideia de máquina.”
Uma outra referência do surrealismo, uma fala do famoso cineasta desse movimento artístico, Luís Buñel, trouxe para Cidade um diálogo direto com o estranhamento e do surreal em nós, latino-americanos. “Buñel fala que o surrealismo tem essa dupla conotação, do qual surreal é a maneira que a gente vive, relacionado ao norte isso fez um boom na hora: nós do sul somos os estranhos, o estrangeiro estranho. Quem tá fora. Acho que tem uma dicotomia na produção latino americana, que é muito rica, porque a gente vive uma necessidade de usar essa criatividade no dia a dia para se reinventar, as maneiras de viver. Exatamente porque a gente não tem uma estrutura social. As mudanças sociais vem muito mais através do indivíduo do que do Estado.”
Eu, horizonte.
Ano 2000. Cruzamento da Avenida Doutor Arnaldo com a Rua Teodoro Sampaio. No centro, um poste. Com os nomes das ruas em duas placas no alto. Outra placa acima delas, de uma propaganda de um banco já extinto. Semáforos ao lado e postes de luz. Árvores em um dia de sol brilham no alto ao fundo. Um ônibus passa. SP Trans. 30 133. Erguido num impulso, um homem branco com ralos cabelos pretos totalmente nu parece flutuar na imagem à frente do ônibus que passa. Suas mãos fixas no poste que tomam o peso do corpo para si permitem uma fotografia singular. No espaço público a disrupção da imagem do cotidiano.
Antes do instante em que essa fotografia veio a ser gestada, Marcelo Cidade havia condicionado seu olhar e o olhar de sua cidade para intervenções de gestos e formas. Todas na ilegalidade. O grafitti e a pixação foram seus experimentos enquanto jovem de expor ações de marcações sobre espaços. Os grupos de amigos que conhecera nas ruas tomaram espaços no desafio de inserir símbolos para uma visibilidade momentânea, em jogos de perceber sem se deixar ser visto. Trens eram os chamarizes mas que poderiam ser muros no alto, onde fosse possível marcar e ser notado. “Tinha uma atuação na rua com graffiti muito forte naquela época. Tem vários entendimentos do que é graffiti. Pra mim eu sempre tentava trazer a essência do graffiti pela ilegalidade, de tentar entender o conceito de Graff It: Grafar alguma coisa. E não do grafiteiro, que é o nosso barroquismo de novo, de tentar dar um novo significado a algo, que já tem um significado, que eu acho que aí está a distorção da realidade, a minha ideia era manter um certo padrão, através da ilegalidade, pensar alguns alvos, para se pensar a cidade como uma espécie de um jogo situacionista, em que eu punha meu nome no máximo de lugares possíveis, para criar uma comunicação com a pessoa que tava dentro desse jogo também, de ocupar essa cidade.”
Uma tag. Que vira uma letra. Que se repete como carimbo. Que se transforma em gesto que se imprime pela cidade inteira. O seu objetivo era pintar onde se sabia que a marca duraria por mais tempo e claro, onde a pintura estaria em movimento pela cidade. “Então a gente pintava em portas de aço, porque as portas abrem e fecham, e ficam por mais tempo: Caminhões, metrôs e trens. Um segundo alvo porque são alvos móveis que vão sair para todo lugar, e seu trabalho está por todo lado e você não tem controle.”
A estratégia para levar as marcas de seus trabalhos era tomada por serem parte de uma ação clandestina. Marcelo e seus parceiros seguiam uma metodologia estritamente rigorosa:
Como você vai ter a tinta. “ir a uma loja de materiais de construção; comprar; colocar alguns sprays nas calças, tentar pegar um látex e esconder não sei aonde; ou fazer uma função para ter uma tinta;
Ir para a linha de trem e entender como a linha funciona. “saber o local preciso onde o trem vai parar; quanto tempo ele fica parado; qual o horário de entrada e saída do segurança e do funcionário da limpeza pra ver quanto tempo tem para conseguir fazer o graffiti”
A relação com o corpo na hora de pregar a marca. “tem uma relação com teu corpo. A letra que você faz é extensão do teu braço, então você tem todo um jogo de performance, de ação, que me interessava muito mais que o resultado final. O resultado final era um blehh, um vômito que depois apagava”
Sobreviver. “Me interessava toda essa situação, pensar na performance de toda essa programação que a gente tem que fazer pra gente sobreviver, porque é um lugar de extremo perigo, pode ser roubado. A linha de trem em São Paulo é um anti-lugar, que é um lugar onde não existe lei, onde seguranças te espancam e te matam. Outros podem te dar um tiro, tem drogados, é uma terra sem lei total. Os seguranças odeiam essa molecada que pintam.”
Ver a obra passando. “Você passa a noite em claro dentro de um túnel do metrô, andando lá e pra cá, respirando aquele negócio. Sair com a cara preta, se sair você vomita. O barulho da tensão elétrica. Tem que saber onde você pisa, pra onde você corre, e ainda mais fazer a pintura, o desenho ali. Depois sair correndo, ir pra Praça da Sé e esperar o trem passar pintado a milhão, porque o trem não para. Então você tem todo um jogo semântico e político de alterar uma comunicação visual de um sistema que se diz funcionar. Então usei e uso isso como metáfora para toda a minha obra, porque é exatamente essa estratégia atrás de um sistema.
Marcelo Cidade, na época, nos anos 2000, estava na faculdade. Eu, Horizonte então surge. O trabalho da imagem representada acima ganha forma em fotografia e como trabalho em 2001. Era uma admissão de que não estaria na pintura expressionista o seu desejo em criar, e sim nas criações do movimento Fluxus e de Allan Kaprow. “O desafio do Eu Horizonte foi o de tentar perceber, como eu me livro dessa identidade graffiti. Deixo ela na rua e vou para o cubo branco, usando meu próprio corpo como corpo político, do corpo nu do homem que poderia ser qualquer homem, homem sem roupa que tira sua identidade, homem pelado, nem é nu. Usando meu corpo pra quebrar os paradigmas do urbanismo que é a verticalização. Então no Eu, Horizonte eu uso o meu corpo para desenhar um espaço por um tempo indeterminado, que a fotografia registra aquilo, um horizonte, e uma linha horizontal. Essa linha quebra um pouco a verticalidade. Eu não chamo de performance, porque a performance você tem uma atuação pública, quase como um teatro, num espaço de tempo mais aberto. Era uma performance pública, que não tinha um público específico. Era uma performance para a câmera. Tinha uma amiga minha que estava com a câmera. Eu saia ao sábado e domingo bem de manhãzinha e a gente fez essas fotos em diferentes lugares. Então fizemos no Trianon, na Nove de Julho virado para o Jardins, no Trianon atrás do MASP virado para o centro. A gente fez na Augusta, em alguns lugares na praça Roosevelt. E na Dr. Arnaldo, onde tem a foto do ônibus que são três fotos, tem uma antes, então você tem a verticalidade que é o ônibus. Esse foi um dos meus primeiros trabalhos de arte que eu entendi que era um trabalho de arte. Eu já estava desenhando, pintando, mas no Eu, Horizonte eu vi que tinha alguma coisa ali. Tem o uso do negócio da ilegalidade e da intervenção naquela época. Intervenção urbana para criar esse período de espaço/tempo que quebra a normalidade das coisas, ou você cria uma situação outra.”
A arte como exceção. A arte como quebra de paradigmas.
“De forma semelhante ao jogo cinematográfico de “Matrix”, este artista quer atacar o núcleo dinâmico do funcionamento do sistema e a cidade é o lugar privilegiado dos acontecimentos e é nela que ele vai buscar o seu material de trabalho. Ruas, muros, viadutos, praças e objetos desafiam o seu olhar.”
Miguel Chaia, no texto A Arte da Exceção, de 2006. Galeria Vermelho.
São Paulo se estende por uma dimensão que abarca um país inteiro. A percepção de os limites geográficos se cruzarem sem fim num mundaréu de relevos, rios e horizontes (em sua esmagadora maioria deformados por projetos de urbanização que privilegia uma especulação imobiliária em detrimento de acolher sua população com dignidade), dá lugar a uma cidade violenta no seu tratamento com o espaço público, o espaço que separa seus cidadãos dos trajetos entre locais privados: o trabalho e a residência. Isso quando não tratamos dos que são despossuídos de terem espaços privados, relegados a um não-espaço.
Marcelo Cidade trabalha com o que mais conhece: esse espaço que separa os cotidianos trajetos de uma população. O vão entre os dois lugares que produzem “segurança” para uma classe média apática e asséptica. Como denota o professor Miguel Chaia em seu texto, a potência no conjunto total de obras já realizadas pelo artista trata dessa realidade de dentro desse sistema para expor a realidade total do meio por onde se movem todos os acontecimentos. “Marcelo produz uma “estética de resistência”, criando obras num embate complexo no campo social, trazendo os signos e as situações da rua para o interior dos circuitos das artes.”
Nascido na capital, cresceu dentro da classe média onde vivia com os pais em um condomínio fechado. Sentia o isolamento com a cidade que os muros altos e as cercas elétricas faziam. “Eu achava que aquilo fosse uma realidade total. Até pegar meu skate, ir pro Anhangabaú, conhecer gente de todos os lugares de São Paulo, criar afetividade e ir viver a vida dessas pessoas.” A pluralidade e o afeto com a cidade começa com o desejo de trocas com o outro lado do isolamento. O skate foi um modo de criar outros laços de pertencimento.
Durante a juventude, Marcelo era inquieto. Explorar as superfícies da cidade o tornou radical na busca por uma arte sem convencionalismos. Se seus colegas na faculdade eram caretas, buscavam algo eloquente numa pintura com cheiro de academicismo, Cidade era a pura alta voltagem. Era Fluxus, Alÿs, Kaprow. Bebeu de Duchamp e regurgitava uma interação com algo que só um artista paulistano sem amarras que não hesitava em descobrir sua cidade, seus becos e vielas, com instrumentos em mãos do underground, do clandestino, poderia lançar.
Em 2006, em sua individual “Outro Lugar”, na Galeria Vermelho, Miguel Chaia viera a escrever sobre Cidade. O texto é uma análise precisa do espaço por onde a arte habita. “A estética da resistência vem de um texto que o Miguel escreve quando faço minha primeira exposição na Vermelho que chama o ‘Outro Lugar’, e esse momento é meio hardcore, de urgência de meter o pé na porta, de tentar usar aquele sistema, de inverter. A estética da resistência é criar esse olhar, esse outro olhar para São Paulo. Essa outra realidade que a gente está falando de múltiplas realidades dentro de um plano. O (Michel) Foucault vai lá falar das Heterotopias possíveis, como alternativa entre a utopia e a distopia, como a gente percebe de lugares diferentes a partir do mesmo lugar. Como a gente atua politicamente através da micropolítica. A micropolítica eu fui entender é essa desconstrução política administrativa, estatal. É um tipo de política em que a gente pode exercer a cidadania. Exercer conceito de política na troca e na troca dentro um espaço comum, o espaço público, que seria a rua.”
Um trabalho em especial que surge dessa sua verve de ocupar espaços institucionais para inserir fragmentos do espaço urbano é a obra “Transestatal”. Uma pilha de resíduos industriais e uma queda d’água que organiza no espaço do cubo branco, para cair dentro de uma piscina. A escultura é feita de lixo de caçamba. O líquido sujo, de cachaça. “Como se fosse uma fonte. A fonte tem um propósito arquitetônico muito doido, na França do (E.T.A.) Hoffmann dizia que toda cidade deveria ter uma fonte. Onde você traz um frescor da pureza num plano urbano. Onde você vai se refrescar. Vai ter um contato maior com a natureza. Tem essa função, e não temos fonte nenhuma em SP. As que temos estão secas, são podres, tem um rio que é podre. Tem essa relação com a natureza que é pesadíssima, então vou pensar a ideia do Foucault, de pensar a transição, onde essa ideia do trans ele fala muito da sexualidade, eu vou pensar esse estado transitório, entre uma coisa e outra coisa, um lugar e o outro, então Transestatal é esse Trans-estado, esse estado em transição das coisas. Aí eu uso o resíduo urbano ilustrando o conceito de entropia.”
No espaço da exposição, o cheiro do álcool proveniente da cachaça faz subir um cheiro inebriante, que atordoa o interlocutor. “Transestatal é uma fonte entrópica onde a água é cachaça, pensar onde como metafisicamente falando a gente pode gerar energia a partir de um detrito, e o método de que se é feito as bebidas alcoólicas, destiladas. Você destila e destila e a partir desse processo joga todo o resto e o que fica você bebe e te altera a percepção com o álcool. Era algo que aconteceu. Você entrava na Vermelho e tava um cheiro de cachaça absurdo, de onde tava caindo. Você ficava lá e saia bêbado. Embriaguez espacial, que é criar essa alteração, outra percepção do mundo. Isso era algo que me interessava naquele momento, eu tinha trabalhos que mexiam com a percepção de você tentar entender não mais o que que é o artista, o que é a obra.”
O fogo amigo e a escada parasita
Quando expôs seus trabalhos na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, Marcelo Cidade queria realizar o incômodo de tornar aquela experiência coletiva a mais disruptiva possível. “Era muito mais jovem. Queria entrar no meio da arte com o pé da porta. Tratava as pessoas do mesmo jeito que tratava as pessoas na rua, coisa bem graffiti. Trabalhos pancadas. Bienal de São Paulo mais nervosa que já fiz. Assumi uma briga institucional absurda.”
Um dos trabalhos expostos, Fogo Amigo (2006), consistia num ousado projeto de inserir seis bloqueadores de celular por todo o prédio da Bienal, com raio de bloqueio de 20 metros. “Criava o que se chamava de zona fria, tem os hot spots de internet. Eu criava os ice spots que seriam os lugares da não comunicação. A minha ideia era romper a comunicação do telefone, minha ideia era romper com a artificialidade da comunicação, pra gente ter um encontro de novo. Nada melhor do que estar numa exposição e esbarrar com alguém. Usar a arte pra conhecer gente que não conheceria.”
Uma semana depois recebe da Fundação Bienal um e-mail informando que o trabalho não ia ser viável, por impor restrição de comunicação. “Fui ver a Claro patrocianava a Bienal”, ri Marcelo hoje ao lembrar. Ao final, ficou acertado com os curadores que seria inserido apenas um bloqueador de celular.
Durante a 27ª Bienal, Marcelo se recorda de ter ali 25 anos de idade e de ter sido até então um dos mais jovens artistas a participar. Impulsivo e com energia, criou uma das mais brilhantes obras daquela e até as das já realizadas até os dias atuais, das Bienais: um desdobramento daquela obra, uma versão móvel dos bloqueadores de celular. Cinco mochilas adaptadas com bateria de moto foram usadas por cinco amigos seus na abertura. “Não teve comunicação nenhuma, as pessoas não se achavam, cadê você? Caos. Não tinha como registrar.” A então jornalista Camila Molina, do Caderno 2, do O Estado de São Paulo, ficou intrigada, chegou em Marcelo e soube da história toda. No dia seguinte a história e a obra existiram na matéria publicada pela jornalista.
Nos meses seguintes, um amigo de Marcelo conseguia ligar para ele do lado da obra, a única permitida que ficava em um andar da exposição. O bloqueador não funcionava. E isso ocorria constantemente. Um dia Marcelo foi lá descobrir que eram os bombeiros que pegavam na obra e desligaram, porque interferia no radinho. “Essa Bienal foi muito importante, eu não tinha consciência na época, era jovem, me apresentava e não sabia. Na minha carreira algo que eu consigo dizer que era muito diferente do que vejo hoje nos artistas jovens, é que não sei como sobrevivi até hoje, porque fazer arte era uma coisa muito espontânea, era muito um gesto, pega aqui, não tinha uma estratégia, vou falar com curador tal.”
Outra obra instigante de Marcelo Cidade na 27ª Bienal de São Paulo foi uma intervenção do lado de fora do Pavilhão da Bienal. Escada Parasita (2006) era uma escada de emergência, instalada no alto de um dos lados do prédio. Sem estar próxima a qualquer porta e distante do chão, se torna uma escada que leva de nenhum lugar a nenhum outro. Tanto nessa obra, quanto em Fogo Amigo há uma ação clandestina de Cidade em uma instituição. A interferência que marca sua trajetória está no não comodismo da arte, mas na reação do interlocutor que é instado a buscar uma forma de lidar com o trabalho de arte.
A posição que Cidade se colocava no meio da arte era a do impulso por uma arte genuina, feita a partir de sua leitura de espaços. Muitos que queriam conhecê-lo na época indagavam ao proprietário da Galeria Vermelho, Eduardo Brandão, se ele era bravo, admite em nossa conversa. “Edu Brandão, meu professor, me incentivava, lá (na galeria) senti um lugar de liberdade que sentia na rua, uma galeria mãe, paternal.”, diz. Na Vermelho, Cidade tem exposto sua ampla pesquisa inventiva sem deixar de lado seu espírito agitado e inovador.
Sobre muro e paint-ball
Estive durante uma nublada tarde no ateliê de Marcelo Cidade para escrever esse texto. Uma tarde de Junho de 2023. Durante a conversa, regada a café e boas memórias, ele me revela em livros e fotografias diversas histórias que ficaram nos registros e nas lembranças dos que viveram toda a efervescência. Efervescência de quando se é jovem e se tem muitas incertezas. Em deglutir e vociferar ideias que se expandem no presente. A presença dos personagens que se encontram nas duas histórias que Cidade revela aqui são mais importantes para suas memórias afetivas. Aqui elas surgem como sombras, que podem ser identificadas por quem vivenciou ao ler. Ao leitor que chegará aqui curioso, acredito que as histórias serão a parte mais saborosa do bolo.
Uma das exposições inaugurais da Galeria Vermelho ocorrida em 2002, chamada Marrom, com curadoria da artista e professora Dora Longo Bahia se propôs ser já logo de cara disruptiva (minha palavra favorita em todo esse texto, não é por menos): abria sem nenhuma obra e aos poucos acontecia, no período da exposição. Quando se aproximava de seu derradeiro fim, nos últimos dias, havia uma vernissage e de repente acabava.
Conhecida por abrigar no começo uma nova geração que surgia, a Vermelho mantém até os dias de hoje esse espaço aberto. Só que no início os artistas conviviam ainda mais intensamente no espaço. “A gente vivia na galeria, artista fazia jantar, concerto de rock, ia para outras práticas, trazer as pessoas.”, diz Marcelo Cidade então sugere a Eduardo uma obra para essa mostra, tão atemporal quanto a própria exposição: uma guerra de paintball. De um lado o grupo da rua. Do outro o grupo do cubo branco. O próprio Marcelo separou a lista de artistas em cada grupo. Detalhe: a guerra ocorreu dentro da galeria. Durante a exibição de obras. “O Edu queria me matar. De jeito nenhum! Vai fuder com tudo! Segunda exposição, não vai ter como!” Marcelo retrucou: “Você está me censurando? Isso é ditadura, censura!” No final, Edu concordou.
O artista André Komatsu constrói então um monte de barricadas. Todos haviam recebido antes uma intimação com todas as regras do jogo. “A gente era radical, a gente queria saber o limite do que era permitido no sistema da arte, os da rua eram os de cinza, os de cubo eram os de branco.” Uma das artistas aparecia na foto com uma cara apavorada. Todos nos seus vinte, trinta anos. O resultado foram obras expostas atingidas com tiros de tinta. As paredes da galeria tornaram-se um cenário de conflito armado de tiros coloridos.
A segunda memória contada por Marcelo Cidade ocorreu no seu último ano de FAAP. Antes de fazer o trabalho final, ele e seus colegas mais próximos não tinham aula e no tempo livre bolaram um ousado projeto, que quase o expulsaria, diz, hoje, incrédulo de toda a situação. A ideia era um trabalho que bloqueasse o acesso das salas da faculdade: “Fiquei durante 3 meses pegando os tijolos de uma reforma da própria FAAP, subindo pra sala.”, diz.
Sorrateiramente, chega num sábado bem de manhãzinha. Marcelo foi o primeiro a chegar. Com todos os amigos presentes se fecharam lá dentro, subiram um muro. Lá tinha uma claraboia. Pularam a claraboia. “Aí na segunda de manhã, o Murilo que era um professor abriu, viu aquilo e chamou a diretoria. Foram lá e sabiam que o trabalho podia quebrar. Ficaram umas horas de tensão, não sabia se quebrava ou não. Até o (professor) Marcos Moraes ir lá e quebrar tudo.”
A ação virou uma lenda urbana, de acordo com Marcelo. Quando questionado por alunos, o professor Marcos Moraes diz que o trabalho nunca existiu. Talvez para não inspirar novas ações do tipo? “Os alunos jovens perguntavam para Dora (Longo Bahia) e ela falava que sim, mas o Marcos dizia que não. E eu nunca mostrei registros disso em galeria nada. Acredito que tem uma certa ética para certos tipos de trabalho, não adianta ampliar e mostrar isso numa galeria, foi um acontecimento.”
Ao ampliar sobre percepções de tempo e espaço numa obra de arte, Cidade diz: “Você registrar essa performance é outro tempo. Você nunca vai vivenciar aquilo. É uma questão atemporal. Esse muro só fez sentido nesse momento. Mostrar isso como um documento é uma coisa, agora mostrar como uma obra não faz sentido nenhum. Eu consigo marcar o tempo pelas horas, tempo racional que gera na nossa vida, mas o tempo do afeto a gente vai lembrar por causa de acontecimentos de nossa vida. Não, ‘porque dia 24/10 foi quando aconteceu isso’, tem gente que consegue (medir o tempo) eu não consigo. Eu tenho uma memória que vai mais dos afetos do que pela racionalidade. Eu me descubro humano nessa geração de afeto do trabalho.”